domingo, 1 de novembro de 2015

Beatriz e Virgílio. Yann Martel. «Esse evento terrível foi representado quase exclusivamente segundo uma única escola: o realismo histórico. A história, sempre a mesma história, foi sempre enquadrada pelas mesmas datas, localizada nos mesmos sítios…»

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«(…) Para tornar tudo mais confuso, o termo flip book também se aplica a uma novidade, a um pequeno livro com uma série de imagens ou fotografias ligeiramente alteradas em páginas sucessivas. Quando estas são passadas rapidamente, é criada uma ilusão de animação, de um cavalo a galopar e a dar um salto, por exemplo. Mais tarde, Henry teve muito tempo para pensar na animação que escolheria para o seu flip book se se tratasse desse tipo de livro: seria um homem a caminhar cheio de confiança, de cabeça bem erguida, até tropeçar e cair no mais espectacular dos trambolhões. Deve referir-se, pois é um pormenor fundamental para as dificuldades com que Henry se deparou para o seu tropeção e o seu espectacular trambolhão, que o set flip book tratava do assassinato de milhões de civis judeus, homens, mulheres e crianças, pelos nazis e os muitos colaboradores voluntários destes últimos, na Europa do século passado. Essa horrível e prolongada erupção de anti-semitismo é amplamente conhecida, por uma estranha convenção que se apropriou de um termo religioso, como Holocausto. Especificamente, o duplo livro de Henry versava as formas nas quais esse evento era representado em histórias. Ao longo de vários anos a ler livros e a ver filmes sobre o assunto, Henry notara que havia muito pouca verdadeira ficção acerca do Holocausto. A abordagem do tema era quase sempre histórica, factual, documental, episódica, testemunhal, literal. Os documentos arquetípicos eram memórias de sobreviventes, como a obra Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, por exemplo. Enquanto a guerra, para pegar noutro evento humano cataclísmico, era constantemente transformada noutra coisa qualquer.
A guerra é sempre trivializada, isto é, apresentada como menos do que aquilo que realmente é. As guerras modernas fizeram dezenas de milhões de vítimas e devastaram países inteiros, no entanto as representações que transmitem a verdadeira fiabilidade da guerra têm de competir para serem vistas, ouvidas e lidas por entre inúmeras histórias de acção de guerra, comédias de guerra, romances de guerra, ficções científicas de guerra e propaganda de guerra. Apesar de tudo isso, quem se lembraria de juntar banalização e guerra numa só frase? Algum grupo de veteranos alguma vez se queixou? Não, porque é assim que falamos de guerra, de muitas maneiras e com muitos objectivos. Com essas representações tão diversificadas, conseguimos compreender o que a guerra significa para nós. Mas não foi tomada concedida, uma liberdade poética semelhante no tratamento do Holocausto. Esse evento terrível foi representado quase exclusivamente segundo uma única escola: o realismo histórico. A história, sempre a mesma história, foi sempre enquadrada pelas mesmas datas, localizada nos mesmos sítios, com as mesmas personagens. Houve algumas excepções: Henry lembrava-se de Alaus, do artista gráfico americano Art Spiegelman.
VerAmar, de David Grossman, também apresentava uma linha de abordagem diferente. Mas mesmo nesses dois casos, a gravidade específica do evento reconduzia o leitor aos factos originais e históricos literais. Se uma história começava num ponto posterior do tempo, ou noutro ponto do espaço, o leitor era inevitavelmente levado a recuar no tempo ou a transpor fronteiras, até chegar a 1943 e à Polónia, como o protagonista de A Seta do Tempo, de Martin Amrs. Assim, Henry começou a interrogar-se: porquê esta suspeita relativamente à imaginação, porquê a resistência à metáfora artificiosa? Uma obra de arte resulta por ser verdadeira, não por ser real. Não havia um risco no facto de se representar o Holocausto de uma forma sempre subordinada à factualidade? Certamente que entre os textos relacionados com o que acontecera, esses diários, memórias e histórias vitais e indispensáveis, havia lugar para os comentários da imaginação. Outros eventos históricos, também horríveis, tinham sido tratados por artistas para o bem geral. Para citar apenas três exemplos bem conhecidos de testemunho artificioso: Orwell com O Triunfo dos Porcos, Camus com A Peste, Picasso com Guernica. Em cada um desses casos, o artista debruçara-se sobre uma tragédia imensa e descontrolada, encontrara o seu coração e representara-o de um modo não literal e compacto. O pesado fardo da História era resumido e embalado numa mala. A arte como uma mala, leve, portátil, essencial: um tal tratamento não seria possível, ou mesmo necessário, para a maior tragédia dos judeus da Europa? Para exemplificar e argumentar a favor dessa forma suplementar de reflectir acerca do Holocausto, Henry escrevera um romance e um ensaio. Haviam-lhe custado cinco anos de trabalho árduo. Quando terminou, fez circular o duplo manuscrito pelos seus editores. Foi então convidado para um almoço. Lembram-se do homem que tropeça e cai no flip book? Henry atravessou o Atlântico de avião para participar nesse almoço, que se realizou em Londres, num dia de Primavera, durante a Feira do Livro de Londres». In Yann Martel, Beatriz e Virgílio, tradução de Fátima Andrade, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-385-5.

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