segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Tragédia do príncipe João (1554). Diogo de Teive. Primeiro dramaturgo neolatino português. Nair de Nazaré C. Soares. «Apesar da dependência dos modelos clássicos que a retórica escolar privilegia, no Renascimento, é visível a preocupação de cada autor em criar um estilo novo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O teatro, sobretudo a tragédia, conheceu grande vitalidade e um novo fulgor no ambiente universitário de Coimbra com a chegada dos Bordaleses. Assim eram designados os mestres que vieram do Colégio da Guiena, a Schola Aquitanica, em Bordéus, com o seu Principal, André Gouveia, fundar o Colégio das Artes, em Coimbra, a 21 de Fevereiro de 1548. Entre estes mestres figuram autores eminentes de tragédias neolatinas, o escocês George Buchanan, o francês Guillaume Guerente e o português Diogo Teive. O reconhecimento do papel pedagógico do teatro, manifestado por alvarás régios de João III que prescreviam a realização de representações na Universidade, a semelhança do que acontecia nos diversos colégios da Europa, presidiu ao espírito da definição curricular dos Regulamentos elaborados por André Gouveia, para o Colégio de Bordéus e para o Colégio das Artes. E sobretudo com a criação deste colégio em Coimbra que a produção dramática e a sua representação fazem parte integrante da ratio studiorum, como elementos fundamentais na formação retórica e moral dos alunos. A encenação teatral de peças de autores antigos ou da autoria de mestres ou de alunos, no acto de graduação em Artes, empresta cor e brilho a vida estudantil e ultrapassa os limites da comunidade académica, envolvendo, no entusiasmo pelo espectáculo, os familiares dos alunos-actores, e o povo da cidade. Estas representações que se impõem pela qualidade do texto dramático, pela música dos coros, pela espectacularidade cénica tornaram-se assim um fenómeno cultural e social.
A presença, no meio académico, dos dramaturgos Bordaleses e a experiência destes mestres como autores e encenadores de peças de teatro, que amiúde representavam, iriam favorecer o espírito de iniciativa literária de novas gerações e condicionar os seus gostos estéticos. E nem só em Portugal, por toda a Europa, se exercita a arte dramática, com a mesma finalidade, nos colégios universitários, alfobres de ideias novas e centros de irradiação de cultura. O intercâmbio intelectual, favorecido pelo magistério de mestres comuns nos vários colégios europeus, onde a língua de comunicação e de ensino era o Latim, desempenha um papel de relevo nas origens e evolução da arte dramática, no seculo XVI. Compreende-se assim que, nesta época, o discurso dramático e mesmo o discurso literário, em geral, qualquer que seja o género cultivado, revele profunda influência da retórica escolar.
A pedagogia retórica que visa a perfeição do discurso, a partir do estudo aturado dos autores clássicos, no original, assenta na prática da memória e na ars combinatoria. Estas, sendo postas ao serviço da multiplex imitatio, tão defendida pelos humanistas desde Petrarca, permitem que as exercitationes não sejam meras repetitiones e se tornem muitas vezes esboços, senão mesmo sólidos alicerces de obras literárias. Os próprios themata escolares, de carácter predominantemente celebrativo, a que o género demonstrativo dá o tom, influíram nas diversas formas literárias e de sobremaneira na dramaturgia quinhentista, maneirista e barroca.
Serve de exemplo o teatro bíblico, em que a constante referencial do mythos e a luta do bem e do mal, antinomia de singular importância nos themata das exercitationes escolares, a que naturalmente se agrega o assunto religioso que a Reforma e as guerras de religião actualizavam. A tragédia, que combina a sublimidade do estilo com o lirismo das odes corais, vai ser um género privilegiado no Renascimento. Dirigida a despertar emoções num público receptor, a tragédia define-se como experiência emocional e intelectual, com uma função emotiva, um valor didáctico. Instrumento sedutor da mimese dramática e a linguagem, a palavra, a que a Poética e a Retórica, com seus recursos estilísticos, conferem força e vigor expressivos. Através do debate e do confronto de ideias das diferentes personagens, a tragédia combina o discurso ético e o agonístico, e os três géneros retóricos, demonstrativo, deliberativo e judicial, com predominância do primeiro.
Apesar da dependência dos modelos clássicos que a retórica escolar privilegia, no Renascimento, é visível a preocupação de cada autor em imprimir à sua obra a marca da actualidade, e em criar um estilo novo. Este não poderia colidir com a tradição antiga, nem com a preceptística, que empenhava tantos humanistas, designadamente em Itália. Essa Itália, herdeira de um passado que a todos atraia, iria revelar ao mundo das letras, não só teorias mas também novas experiências teatrais. Umas e outras dariam fruto entre nós com a desaparecida Cleópatra de Sá de Miranda. O próprio António Ferreira para elas voltaria os olhos e a sensibilidade. Giovan Giorgio Trissino e Giovan Battista Giraldi Cinzio, pioneiros do teatro regular europeu e corifeus da tragédia grega e senequiana, respectivamente, foram determinantes, com a sua produção dramática e a sua teorização, na fixação de modelos trágicos, no Renascimento». In Nair de Nazaré Castro Soares, A Tragédia do príncipe João (1554, Diogo de Teive, Primeiro dramaturgo neolatino português, Teatro Neolatino em Portugal no Contexto da Europa, Revista Pombalina (Coimbra university press), Documentos, Sebastião T. Pinho (coordenação), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, ISBN 972-870-475-5.

Cortesia da IUdeCoimbra/JDACT