«O
teatro, sobretudo a tragédia, conheceu grande vitalidade e um novo fulgor no
ambiente universitário de Coimbra com a chegada dos Bordaleses. Assim eram designados os mestres que vieram do Colégio
da Guiena, a Schola Aquitanica, em Bordéus, com o seu Principal, André
Gouveia, fundar o Colégio das Artes, em Coimbra, a 21 de Fevereiro de 1548. Entre estes mestres figuram
autores eminentes de tragédias neolatinas, o escocês George Buchanan, o francês
Guillaume Guerente e o português Diogo Teive. O reconhecimento do papel pedagógico
do teatro, manifestado por alvarás régios de João III que prescreviam a
realização de representações na Universidade, a semelhança do que acontecia nos
diversos colégios da Europa, presidiu ao espírito da definição curricular dos
Regulamentos elaborados por André Gouveia, para o Colégio de Bordéus e para o
Colégio das Artes. E sobretudo com a criação deste colégio em Coimbra que a
produção dramática e a sua representação fazem parte integrante da ratio
studiorum, como elementos fundamentais na formação retórica e moral dos
alunos. A encenação teatral de peças de autores antigos ou da autoria de
mestres ou de alunos, no acto de graduação em Artes, empresta cor e brilho a
vida estudantil e ultrapassa os limites da comunidade académica, envolvendo, no
entusiasmo pelo espectáculo, os familiares dos alunos-actores, e o povo da
cidade. Estas representações que se impõem pela qualidade do texto dramático,
pela música dos coros, pela espectacularidade cénica tornaram-se assim um fenómeno
cultural e social.
A
presença, no meio académico, dos dramaturgos Bordaleses e a experiência destes mestres como autores e
encenadores de peças de teatro, que amiúde representavam, iriam favorecer o
espírito de iniciativa literária de novas gerações e condicionar os seus gostos
estéticos. E nem só em Portugal, por toda a Europa, se exercita a arte dramática,
com a mesma finalidade, nos colégios universitários, alfobres de ideias novas e
centros de irradiação de cultura. O intercâmbio intelectual, favorecido pelo
magistério de mestres comuns nos vários colégios europeus, onde a língua de
comunicação e de ensino era o Latim, desempenha um papel de relevo nas origens
e evolução da arte dramática, no seculo XVI. Compreende-se assim que, nesta
época, o discurso dramático e mesmo o discurso literário, em geral, qualquer
que seja o género cultivado, revele profunda influência da retórica escolar.
A
pedagogia retórica que visa a perfeição do discurso, a partir do estudo aturado
dos autores clássicos, no original, assenta na prática da memória e na ars
combinatoria. Estas, sendo postas ao serviço da multiplex imitatio,
tão defendida pelos humanistas desde Petrarca, permitem que as exercitationes
não sejam meras repetitiones e se tornem muitas vezes esboços, senão
mesmo sólidos alicerces de obras literárias. Os próprios themata escolares,
de carácter predominantemente celebrativo, a que o género demonstrativo dá o
tom, influíram nas diversas formas literárias e de sobremaneira na dramaturgia
quinhentista, maneirista e barroca.
Serve
de exemplo o teatro bíblico, em que a constante referencial do mythos e
a luta do bem e do mal, antinomia de singular importância nos themata das
exercitationes escolares, a que naturalmente se agrega o assunto religioso
que a Reforma e as guerras de religião actualizavam. A tragédia, que combina a
sublimidade do estilo com o lirismo das odes corais, vai ser um género
privilegiado no Renascimento. Dirigida a despertar emoções num público
receptor, a tragédia define-se como experiência emocional e intelectual, com
uma função emotiva, um valor didáctico. Instrumento sedutor da mimese dramática
e a linguagem, a palavra, a que a Poética e a Retórica, com seus recursos
estilísticos, conferem força e vigor expressivos. Através do debate e do
confronto de ideias das diferentes personagens, a tragédia combina o discurso
ético e o agonístico, e os três géneros retóricos, demonstrativo, deliberativo
e judicial, com predominância do primeiro.
Apesar da dependência dos modelos
clássicos que a retórica escolar privilegia, no Renascimento, é visível a
preocupação de cada autor em imprimir à sua obra a marca da actualidade, e em
criar um estilo novo. Este não poderia colidir com a tradição antiga, nem com a
preceptística, que empenhava tantos humanistas, designadamente em Itália. Essa
Itália, herdeira de um passado que a todos atraia, iria revelar ao mundo das
letras, não só teorias mas também novas experiências teatrais. Umas e outras
dariam fruto entre nós com a desaparecida Cleópatra de Sá de Miranda. O
próprio António Ferreira para elas voltaria os olhos e a sensibilidade. Giovan
Giorgio Trissino e Giovan Battista Giraldi Cinzio, pioneiros do teatro regular
europeu e corifeus da tragédia grega e senequiana, respectivamente, foram determinantes,
com a sua produção dramática e a sua teorização, na fixação de modelos trágicos,
no Renascimento». In Nair de Nazaré Castro Soares, A Tragédia do príncipe João (1554, Diogo
de Teive, Primeiro dramaturgo neolatino português, Teatro Neolatino em Portugal
no Contexto da Europa, Revista Pombalina (Coimbra university press), Documentos,
Sebastião T. Pinho (coordenação), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, ISBN
972-870-475-5.
Cortesia
da IUdeCoimbra/JDACT