Pré-prefácio
(Leitura breve
por excesso de cuidado)
«(…) Quando o burguês se revolta
contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe
ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as
suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos,
os seus prazeres. Se a mulher se revolta
contra o homem nada fica intacto.
Terá sido este o
pressentimento que acabou por levar as autoras das Novas Cartas
Portuguesas
aos bancos do tribunal? Bem o julgo. A uma sociedade que se apresentava sem
saída soava como anúncio do fim essa revolta sem armas, essa explosão possível
de tudo o que sempre fora tido por conveniente, por correcto, por
assepticamente puro. Essa a razão escondida da cegueira cultural que nem sequer
se permitiu o debate sobre o significado da obra, sobre o contexto social e
literário em que se inseria, sobre o sentido profundo das suas mais
contundentes afirmações.
É tal a rotura
introduzida pelas Novas Cartas Portuguesas que a sua
primeira abordagem só pode ser feita à luz do que elas não são. Não são uma
colectânea de cartas, embora se reconheça nelas o estilo tradicionalmente
cultivado pelas mulheres em literatura. Não são um conjunto de poemas esparsos,
embora em poesia se converta toda a realidade retratada. Não são tão-pouco um
romance, embora a história vivida (ou imaginada) de Mariana Alcoforado lhes
seja a trama principal. São talvez um pouco de tudo isso. E ainda mais: uma
forma nova de dizer a pessoa humana e o seu modo de estar no mundo, um ensaio que
não se quer filosófico, mas que toca as raízes do ser, um contributo inédito
para a antropologia social, no que (à maneira de um García Márquez ou de um
Oscar Lewis) recolhe de vida, de sensações, de comportamentos singulares
universalizados.
Porque rompem,
extravasam. Daí que as Novas Cartas Portuguesas se
caracterizem antes de mais pelo excesso. Excessivas as situações, excessivo o
tom, excessivas as repetições dum mesmo acto, excessivo afinal todo o livro que
vai terminando sem realmente terminar, como se tal excesso não coubesse nas
dimensões normais. Nesse excesso – que não o é, aliás, apenas deste livro mas
de todo o movimento neofeminista dos últimos anos – reside, afinal, a grande
ambiguidade que fez com que as fronteiras entre o erotismo e a pornografia
fossem consideradas ultrapassadas. Na lógica da própria obra, enquanto denúncia
da opressão sexista, seria decerto de esperar que a relação homem/mulher, no
que deles faz «uma só carne», fosse desdobrada, dissecada, em variados modos e
momentos. Mas o que acontece é mais do que isso. Acontece o excesso como
qualificativo de tudo, mesmo do que na relação homem/mulher é tido como
quotidiano. Acontece o excesso na forma de tudo dizer tão proximamente que fica
a impressão de ouvir a cada passo: «nesse acto eu sou». Acontece o excesso na
ousadia de serem mulheres a quebrar os limites, a inverter a situação
sujeito/objecto universalmente adquirida (ao apropriarem-se de situações até
hoje só ditas por homens, as autoras «matam» de facto alguém: matam o fantasma
do homem-senhor que paira no horizonte afectivo das mulheres. E matam-no com as
próprias armas que o homem utiliza para dominar a mulher – Judite e decapitar
Holofernes ... ).
Nesse excesso, o
caminho percorrido é necessariamente egocêntrico.
Nas Novas Cartas
Portuguesas,
as mulheres comprazem-se em si próprias, a sua paixão alimenta-se de si. Daí a
reivindicação obsessiva do corpo como primeiro campo de batalha onde a revolta
se manifesta. A uma primeira leitura, tudo parece concentrar-se na
materialidade de actos e de expressões sexuais, numa repetição, sincopada ao
longo do livro, de descrições e de complacências. Dessa primeira leitura, de
sentido literal, surgirá uma noção de sexualidade que para muitos leitores é
limitada pelo próprio excesso dos actos e sensações em que é veiculada. Ficam
na sombra dimensões claramente espirituais ou formas tranquilas (não
excessivas) da expressão física da sexualidade. A alienação do corpo é a zona
utilizada preferencialmente, embora não exclusivamente, pelas autoras para
dizer, a um tempo, a opressão e a revolta, a sujeição e a autonomia das
mulheres. Porquê esta alienação e não outra? Porque não o trabalho e as
condições em que é realizado? Porque não o esforço ininterrupto e não remunerado
dos encargos domésticos? Porque não a responsabilidade pela vida dos filhos
nascidos ou por nascer? Porque não a inserção na vida social?
Todas estas
zonas são do domínio público, enquanto a zona da opressão do corpo é do domínio
privado. E é por forma contundente, dura, desmedida, que as autoras querem
fazer estalar a hipocrisia que cobre essa zona privada. Que o fazem com grande
narcisismo, à beira da rotunda do viável, é um facto. Que o dizem com palavras
crispadas, também. Que imaginam situações que se subtraem ao domínio da moral,
é evidente. Ao concentrarem-se sobre o corpo, correm as autoras um risco: o de
o absolutarizarem como os homens o fizeram. De tratarem o corpo como uma
«coisa», objecto da paixão ou seu exercício. E de uma «coisa» tudo pode ser
dito – daí o excesso. Os limites que acabo de pôr são os que decorrem de uma primeira
leitura, colada ao significado literal do texto. Fica a questão de saber se a
revolta das mulheres se pode esgotar nessa reivindicação daquilo que
tradicionalmente foram palavras de homens. Fica levantada a questão da moral e
da sua invenção. Fica sobretudo caminho aberto para uma descoberta da
sexualidade abarcando registos diversos. É óbvio que as Novas Cartas
Portuguesas
não teriam tido o eco que lhes conhecemos se não atingissem um nível
simbólico em que se reconhecem mulheres de todos os continentes e classes
sociais. Numa segunda leitura, o corpo, como lugar preferencial da denúncia da
opressão das mulheres, excede-se naquilo que representa. Funciona como metáfora de todas as formas de opressão
escondidas e ainda não vencidas. Ao apresentar aos leitores esta nova edição
das Novas Cartas Portuguesas, é a essa segunda leitura que os convido. In Maria de Lourdes Pintasilgo
In
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas
Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN
978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT