segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Farsa. Christopher Reich. «… de mau jeito e atravessou o ‘tobogã’ a uma velocidade altíssima, com o esqui levemente torto, pressionado com força na neve. As suas mãos estavam exageradamente erguidas e o corpo muito curvado para a frente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Jonathan ergueu os olhos para a montanha. Já fora surpreendido por uma avalanche uma vez. Passara 11 minutos abaixo da superfície, enterrado na escuridão, incapaz de mover a mão ou sequer o dedo, sentindo frio demais para perceber que a perna fora deslocada da articulação e estava virada para trás, deixando o joelho a poucos centímetros da orelha. No final das contas, sobrevivera porque um amigo tinha visto a cruz do seu casaco de patrulheiro segundos antes de ele ser soterrado. Dez segundos se passaram. O rugido cessou. O vento amainou e um silêncio soturno se abateu sobre a encosta. Sem dizer uma palavra, ele desenrolou a corda que trazia em volta do tronco e amarrou uma das pontas na cintura de Emma. Recuar não era uma alternativa. Tinham de sair do caminho da avalanche iminente. Gesticulando com as mãos, Jonathan informou que iriam pegar uma trilha que subia o paredão, e que ela deveria segui-lo. Tudo bem? Tudo bem, ela respondeu. Apontando os esquis para cima da encosta, Jonathan recomeçou a andar. O paredão era muito íngreme e acompanhava a lateral da montanha. Ele manteve um ritmo puxado. A cada poucos passos, olhava por cima do ombro e via Emma onde deveria estar, não mais de cinco passos atrás. O vento aumentou e mudou o curso para o leste. A neve os fustigava em rajadas horizontais, puxando as dobras de suas roupas. Jonathan perdeu toda a sensação nos dedos dos pés. Os das mãos ficaram dormentes e rígidos. A visibilidade caiu de sete para três metros e, depois disso, ele passou a não conseguir ver nada além da ponta do nariz. Somente o cansaço nas suas coxas lhe informava que estava subindo e se afastando da greta. Uma hora depois chegou ao cume. Exausto, escorou os esquis na neve e ajudou Emma nos últimos metros, puxando-a. Erguendo os esquis pela lateral, ela desabou nos seus braços. Os seus arquejos vinham em golfadas espasmódicas. Ele segurou-a bem apertado até ela recuperar o fôlego e conseguir ficar em pé sozinha.
Ali, entre dois cumes, o vento os castigava com a força de um motor de jacto. O céu, porém, havia clareado um pouco, e Jonathan pôde ver de relance o vale mais abaixo que conduzia à cidadezinha de Frauenkirch e, depois, a Davos. Esquiou até a outra ponta do cume e olhou pela encosta protuberante. Sete metros mais abaixo, um tobogã de neve descia como um vão de elevador por entre saliências de rocha. É a pista de Roman. Se a gente conseguir descer por aqui, vai ficar tudo bem. A pista de Roman fazia parte do folclore da região e devia seu nome a um guia morto por uma avalanche durante uma descida de esquis. Emma arregalou os olhos. Encarou Jonathan e sacudiu a cabeça fazendo que não. É íngreme demais. Já vimos piores. Não, Jonathan..., olhe só para essa descida. Não tem outro jeito? Hoje não. Mas... Querida, ou nós descemos  daqui ou vai morrer congelada. Ela chegou mais perto da borda, esticando o pescoço para ver melhor o que havia lá em baixo. Recuou, apoiando o queixo no peito. Quer saber?, disse, meio a contragosto. Nós já estamos aqui mesmo. Vamos lá. É só uma pequena descida, uma curva rápida, e pronto. Como eu disse, a gente já viu piores. Emma aquiesceu, agora com mais certeza. E, durante alguns instantes, deu a impressão de que não havia nada de errado, de que não estavam lutando contra provável acidente e de que estava ansiando desde o começo por testar suas habilidades naquele declive quase suicida. Tudo bem, então. Jonathan tirou os esquis e removeu a película que os cobria. Empunhando um deles como uma picareta, recortou um bloco de um metro quadrado de neve e atirou-o pela encosta. O gelo foi rolando montanha abaixo. Trilhas de neve solta escorreram vagarosamente em alguns pontos da pista, mas a encosta resistiu bem. Venha atrás de mim, disse ele. Vou abrir a trilha. Emma chegou ao seu lado, com as pontas dos esquis suspensas acima do vazio. Para trás, falou Jonathan, apressando-se em calçar os seus esquis. Ela estava com aquela expressão. Não precisou olhar para saber. Pôde sentir. Deixe que eu vou primeiro. Não posso deixar todo o trabalho pesado nas suas costas. Nem pense nisso! O último a chegar é mulher do padre, lembra? Ei..., não! Emma deu impulso, ficou alguns instantes suspensa no ar, em seguida caiu sobre a pista e seus esquis bateram no gelo, fazendo um chiado. Aterrissou de mau jeito e atravessou o tobogã a uma velocidade altíssima, com o esqui levemente torto, pressionado com força na neve. As suas mãos estavam exageradamente erguidas e o corpo muito curvado para a frente. Toda a sua silhueta parecia desgovernada, fora de controle. Os olhos de Jonathan voaram para as pedras que margeavam o tobogã. Vire!, gritou uma voz dentro dele». In Christopher Reich, A Farsa, tradução de Fernanda Abreu, Editora Arqueiro, S. Paulo, 2008, ISBN 978-858-041-013-6.

Cortesia de EArqueiro/JDACT