domingo, 1 de novembro de 2015

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «Não são tão-pouco um romance, embora a história vivida (ou imaginada) de Mariana Alcoforado lhes seja a trama principal. São talvez um pouco de tudo isso. E ainda mais: uma forma nova de dizer a pessoa humana e o seu modo de estar no mundo (...)»

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«Está decretada a gravidade desta empresa. O que farei convosco será grave, ainda que para tanto haja que rir-me. Ou, como hoje, nem tanto». In Ana Luísa Amaral, Novas Cartas Portuguesas

«(…) Por outras palavras, apesar da repercussão significativa nos anos setenta de Novas Cartas, a sua devida importância está ainda por reconhecer, uma vez que o livro tem sido frequentemente treslido e tomado ora por uma visão ultrapassada ora por um manifesto feminista hoje fora de moda. As recensões ao livro nos anos noventa ainda o apresentavam como um mero documento histórico, talvez mais valioso (...) do que uma obra literária, reflectindo o entusiasmo e as limitações da sua geração (Publisher’s Weekly 1994). E, todavia, como Linda Kaufman já havia afirmado nos anos oitenta, as três Marias não ( ... ) celebram meramente a mística feminina; nem subscrevem as teorias essencialistas de algumas das feministas francesas suas contemporâneas relativamente à natureza da mulher, ou seja, o livro que escrevem abre caminho para questões da ordem do universal, que ultrapassam uma ideia cristalizada de mulher, mantendo-se extraordinárias na sua actualidade. Desmontando, como se referiu já, as noções de autoria e autoridade, o livro exibe, do ponto de vista literário, três características principais que viriam a ser centrais para a literatura contemporânea: a intertextualidade, a hibridez e a alteridade. A dimensão intertextual, o carácter híbrido e o modo como Novas Cartas Portuguesas lidam com o corpo social do discurso criam instâncias de disrupção e transgressão raramente vistas na literatura ocidental contemporânea, uma disrupção tão forte que, como refere Maria de Lourdes Pintasilgo no Prefácio ao livro, a sua primeira abordagem só pode ser feita à luz do que elas não são. Novas Cartas não são uma colectânea de cartas, embora se reconheça nelas o estilo tradicionalmente cultivado pelas mulheres em literatura. Não são um conjunto de poemas esparsos, embora em poesia se converta toda a realidade retratada. Não são tão-pouco um romance, embora a história vivida (ou imaginada) de Mariana Alcoforado lhes seja a trama principal. São talvez um pouco de tudo isso. E ainda mais: uma forma nova de dizer a pessoa humana e o seu modo de estar no mundo (...). Por isso podem Novas Cartas ser ainda analisadas à luz de novas lentes teóricas.
Apesar de ensinado actualmente num número considerável de universidades estrangeiras, e apesar de ter sido, no estrangeiro, objecto de estudo de dissertações, ensaios e artigos de imprensa, o livro carece de uma visão englobante da sua génese e da total compreensão das suas propostas e desafios. As leituras políticas do livro são frequentes, mas raramente têm em conta o contexto das teorias linguísticas ou pós-estruturalistas; também raramente foi sublinhado o potencial do livro para fazer explodir as dicotomias em que assentam identidades e papéis sexuais, e, com elas, a própria rigidez atribuída à periodização histórica; e raramente a obra foi entendida como um novo discurso crítico sobre a re/apresentação, a subjectividade e o desejo da mulher, desempenhando a função de definir o feminismo, nas palavras de Teresa Lauretis, como um horizonte de possíveis significados num determinado ponto da história. Reescrevendo, pois, as conhecidas cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas afirma-se como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma invulgar originalidade e actualidade, do ponto de vista literário e social. Comprova-o o facto de poder ser hoje lido à luz das mais recentes teorias feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), uma vez que resiste à catalogação, ao desmantelar as fronteiras entre os géneros narrativo, poético e epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão. Comprova-o o facto de, passados mais de trinta anos, vir ao encontro de questões prementes na agenda política actual, como a feminização da pobreza, identificada como obstáculo à promoção da paz e ao desenvolvimento mundial. Pelo seu amplo significado em termos políticos e estéticos, o livro foi, e permanece, uma obra fundamental na nossa literatura e cultura contemporâneas, revelando-se um contributo inestimável para a história das mulheres, no sentido mais lato, e para as questões relativas à igualdade e à justiça. Esse significado teve um reconhecimento além-fronteiras que nunca foi devidamente assinalado, nem estudado em Portugal, reconhecimento evidente no número espantoso de traduções para outras línguas, que o coloca entre os livros portugueses mais traduzidos no estrangeiro. Tendo estado esgotado durante mais de dez anos, o livro veria uma reedição, pela Dom Quixote, em 1998, e depois em 2001, também hoje completamente esgotada». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
                                                
Cortesia PdQuixote/JDACT