As
amigas
«(…)
Um dia, encontraram no chão da rua um homem com um qualquer ataque, talvez
droga, talvez outras poluições psíquicas desta vida. Era jovem ainda. Mais
ninguém estava perto. Pestanejante olhou brevemente, pestanejando, desviou os
olhos, estas coisas fazem-me imensa impressão, murmurou, e seguiu andando.
Autofágica olhou intensamente o jovem, curiosa, roendo as unhas, olhou em volta
esperando nova presença ou inspiração, sem saber o que fazer. Biface olhou de olhos
arregalados e boca aberta, especada durante alguns minutos; depois fechou mais
a sua boca prognata, esticou o queixo, dirigiu-se ao telefone mais próximo e
chamou o 112. Dividida entre o sim e o não, era a única que tinha algum senso
prático. As outras gastavam-se nas convicções absolutas, totalitarismos de seus
universos interiores.
A
partir daqui a amizade delas, ou o convívio, foi arrefecendo. Pestanejante não
podia suportar a ideia de que Autofágica a vira voltar as costas à dor alheia e
que Biface fora a única que agira em boa samaritana. Autofágica intuía que
chegara a uma conclusão, a uma resposta ao seu olhar ansioso, e que mais
nenhuma revelação lhe viria daquelas duas mulheres, suas amigas tão
relativamente íntimas: vira a ineficiência que se esconde naqueles que só sabem
falar, vira os recursos que se escondem nos hesitantes, contraditórios e pobres
de espírito. Biface deixou de ter vontade de rir quando via Autofágica roer as unhas
perante o mundo, quando ouvia Pestanejante ditar conselhos ao mundo. Tudo isto
insidiosamente, na sombra mais escura do espírito de cada uma: nenhuma delas
saberia reportar agravos, ou os porquês das mudanças de sentimento e atitude.
Acho que me fartei delas, foi dizendo cada uma. Assim acabam as mais belas e as
mais feias amizades.
Alguns
anos mais tarde uma dúvida surgiu na mente de Pestanejante: será que aquele
jovem caído na rua apenas tivera essa missão, a de as separar, às três, tão
pouco feitas para permanecerem juntas? Autofágica e Biface nunca mais pensaram
no assunto.
A
Direcção do Olhar
Era
uma vez um homem de olhar fugidio. Frequentemente revirava os olhos para cima,
procurando os seus pensamentos no alto. No alto do cérebro, no alto do céu ou
no alto da inspiração seria impossível dizer-se, porque ele não tinha
convicções seguras e definitivas: não era religioso mas admitia que talvez,
sim, houvesse um ser, por aí, causante de tudo, porque não, porquê atribuirmos
as leis do mundo ao mero acaso ou a uma cega organização da matéria? Porquê
darmos a primazia ao nada ou à matéria inanimada, dizia, e achava que essa tendência
humana para preterir o ser para o lugar de mero efeito ou consequência do
não-ser era um sintoma do masoquismo que acabava por se generalizar à maior
parte dos actos humanos. Com estes argumentos, aliás certeiramente expostos,
ele podia ser um homem brilhante, não afirmava as paisagens divinas como origem
de todo o fenómeno humano e, simultaneamente, também não conferia grande
confiança à nossa espécie, julgando-a capaz dos absurdos mais notáveis, como
esse de utilizar o próprio discurso do ser, do ser que fala e se pretende
conhecedor de si, ordenador do resto, para o reduzir a comemoração de fenómenos
menores do que o elo caucionante ser.
Restava-lhe
talvez esse refúgio sagrado e constantemente evocado ao longo dos tempos por
filósofos, artistas, intelectuais: um secreto contacto entre os seres humanos e
alguns fogos, ou energias, ou seres invisíveis, por aí espalhados, no éter, na
sombra dos cantos das nossas casas; enfim, aquilo a que se chama inspiração e que
é sempre uma estranha amálgama de restos de fé, ou de fé mal resolvida num ser
pensante absolutamente maior que nós, e de rasgos humanistas profundamente
comovidos perante o milagre anónimo que somos. Quer dizer, parecia ser mesmo aí
que ele buscava os seus pensamentos quando revirava os olhos: no alto da
inspiração, nessa amálgama entre o aqui e o acolá, talvez nos astros ou na poeira
cósmica ou no inconsciente colectivo, talvez na secreta alquimia de cada um de
nós com todo o universo. Parecia: mas
como ter a certeza? Como pode qualquer certeza estabelecer-se sobre a
dúvida? Se interrogássemos este homem, que podia ser brilhante, sobre a natureza
da inspiração, ele reviraria os olhos e buscaria no alto indefinido o conteúdo
das suas definições». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns,
1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho,
2008, ISBN 978-972-210-886-7.
Cortesia
ECaminho/JDACT