Cortesia
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«(…)
Teria preferido encontrar qualquer um,
menos o mordaz Crates. Ainda mais naquela miserável situação, e numa cidade pouco
amistosa como Tebas. Todavia, não podendo evitá-lo, foi ao seu encontro.
Crates, porém, surpreendeu-o com amável tratamento. Começou falando-lhe, em
geral, sobre a condição do exilado: uma condição, disse-lhe ele, isenta de
qualquer dificuldade, uma verdadeira ocasião para se libertar de tantos aborrecimentos
e imprevistos da política; coragem, Demétrio, concluiu ele, tem confiança em ti
mesmo e nessa nova condição em que vieste a te encontrar. Demétrio, que
governara Atenas por dez anos e deixara que a cidade fosse ocupada por centenas
de estátuas em sua honra, agora tivera de se esconder em nada menos que Tebas,
para não cair nas mãos do cerca-cidades, o novo senhor de Atenas, assim chamado
numa irónica alusão à sua obstinada e frequentemente inútil actividade poliorcética.
Ficou quase incrédulo diante da insólita cortesia de seu interlocutor. Tranquilizou-se
por um instante e, dirigindo-se aos amigos, um pouco por gracejo e um pouco a sério:
maldita política, exclamou, que até hoje me impediu de conhecer esse homem!
Evidentemente, absteve-se de seguir seu conselho, que, no entanto, como ficou
claro muitos anos depois aos que ainda se lembravam do estranho encontro,
tivera o significado de uma autêntica advertência divina. Deixou Tebas tão logo
lhe foi possível, e se apresentou em Alexandria. E aqui, na corte de Ptolomeu,
viveu sua última estação como conselheiro do rei. Já em sua época, Filipe da
Macedónia quisera Aristóteles como preceptor de Alexandre. Ptolomeu, primeiro
monarca do Egipto, para seu filho predilecto queria Teofrasto, o sucessor de Aristóteles.
Mas Teofrasto não saíra de Atenas; mandara-lhe um estudante razoavelmente bom,
Estrabão, que depois (mas isso ele não podia prever) se tornaria seu sucessor.
Portanto, para a dinastia macedónia dos Lágidas, que, mais do que qualquer
outra, gabava-se de uma descendência directa de Filipe (Ptolomeu deixava que
dissessem que seu verdadeiro pai era Filipe, e Teócrito chega a tecer detalhes
sobre essa insinuação no Encómio a Ptolomeu), a relação com a escola de Aristóteles
era, em certo sentido, hereditária. O próprio pai de Aristóteles havia sido o médico
pessoal do rei macedónio. Isso explica por que Demétrio optou sem hesitação por
Alexandria. Ele também havia pertencido à escola: fora aluno de Aristóteles e
amigo de Teofrasto, e quando governou Atenas favoreceu sob todas as formas
aquela associação fechada, um tanto malvista, de metecos. Agora que seu protector
Cassandro sofrerá um derrota que comprometia também a ele, Demétrio refugiava-se
junto aos Ptolomeus, que, ademais, eram parentes de Cassandro e seu pai
Antipater, regente da Macedónia desde a morte de Alexandre. Levou ao Egipto
o modelo aristotélico, e f oi esta a chave de seu sucesso.
Esse modelo, que havia colocado o Perípato na
vanguarda da ciência ocidental, era agora adoptado em grande estilo e sob protecção
real em Alexandria. A tal ponto que se disse posteriormente, num anacronismo
apenas aparente, que Aristóteles ensinara aos reis do Egipto como se organiza
uma biblioteca. Disse-se também que Demétrio havia recomendado a Ptolomeu constituir
uma colecção dos livros sobre a realeza e o exercício do mando e lê-los, e que
até fora ele a dar início, tendo-se tornado íntimo do soberano a ponto de ser definido
como o primeiro de seus amigos, à legislação lançada por Ptolomeu. Intrigante
como era, porém, não resistiu, tendo chegado a tais alturas, ao impulso de
dirigir pessoalmente a política dinástica do soberano. Ptolomeu tinha filhos de
primeiras núpcias com Eurídice, e quatro filhos de Berenice, uma viúva
experiente e de grande fascínio, originária de Cirene. Berenice chegara a
Alexandria junto com Eurídice. A convivência dos três na corte fora excelente.
Mas Ptolomeu começou a preferir um de seus quatro filhos com Berenice, a ponto
de querer associá-lo ao trono. Era isso que preocupava Eurídice. Demétrio se
intrometeu nessa questão delicada, tomando o partido de Eurídice, talvez também
por ser Eurídice filha de Antipater. Talvez tivesse pensado que dificilmente
Ptolomeu acabaria por se ligar dinasticamente a uma família de senhores locais,
em vez dos donos do reino macedónio. E começou a alertar o soberano, tocando
numa tecla que lhe parecia eficaz: se deres a um outro, repetia-lhe, depois ficarás
sem nada. Mas não conseguiu chegar a lugar algum com seus argumentos um
pouco mesquinhos. Ptolomeu já estava decidido a associar-se ao filho predilecto.
Eurídice compreendeu que não havia mais nada que pudesse fazer e, desesperançada,
deixou o Egipto. Pouco depois, no início do ano 285 a.C., o jovem Ptolomeu foi oficialmente
colocado ao lado do pai, e dividiu com ele o reinado por três anos, até à morte
do Só ter. Tornando-se o único soberano, pensou em se livrar de Demétrio:
mandou prendê-lo, ou talvez apenas mantê-lo sob vigilância, antes de tomar uma
resolução definitiva sobre ele. Assim, Demétrio estava novamente por baixo,
como no tempo de sua miserável estada em Tebas, quando as palavras inutilmente
previdentes de Crates apenas divertiam, mas não o afectavam. Isolado, sob
estrita vigilância, num vilarejo do interior, um dia estava dormitando. Sentiu
de repente uma dor lancinante na mão direita, que, durante o sono, pendia ao
lado. Quando percebeu que fora mordido por uma serpente, já era tarde demais.
Evidentemente, o incidente fora arquitectado por Ptolomeu». In Luciano Canfora, A Biblioteca
Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.
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