sábado, 24 de dezembro de 2016

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «Ptolomeu tinha filhos de primeiras núpcias com Eurídice, e quatro filhos de Berenice, uma viúva experiente e de grande fascínio, originária de Cirene»

Cortesia de wikipedia e JDACT

«(…) Teria preferido encontrar qualquer um, menos o mordaz Crates. Ainda mais naquela miserável situação, e numa cidade pouco amistosa como Tebas. Todavia, não podendo evitá-lo, foi ao seu encontro. Crates, porém, surpreendeu-o com amável tratamento. Começou falando-lhe, em geral, sobre a condição do exilado: uma condição, disse-lhe ele, isenta de qualquer dificuldade, uma verdadeira ocasião para se libertar de tantos aborrecimentos e imprevistos da política; coragem, Demétrio, concluiu ele, tem confiança em ti mesmo e nessa nova condição em que vieste a te encontrar. Demétrio, que governara Atenas por dez anos e deixara que a cidade fosse ocupada por centenas de estátuas em sua honra, agora tivera de se esconder em nada menos que Tebas, para não cair nas mãos do cerca-cidades, o novo senhor de Atenas, assim chamado numa irónica alusão à sua obstinada e frequentemente inútil actividade poliorcética. Ficou quase incrédulo diante da insólita cortesia de seu interlocutor. Tranquilizou-se por um instante e, dirigindo-se aos amigos, um pouco por gracejo e um pouco a sério: maldita política, exclamou, que até hoje me impediu de conhecer esse homem! Evidentemente, absteve-se de seguir seu conselho, que, no entanto, como ficou claro muitos anos depois aos que ainda se lembravam do estranho encontro, tivera o significado de uma autêntica advertência divina. Deixou Tebas tão logo lhe foi possível, e se apresentou em Alexandria. E aqui, na corte de Ptolomeu, viveu sua última estação como conselheiro do rei. Já em sua época, Filipe da Macedónia quisera Aristóteles como preceptor de Alexandre. Ptolomeu, primeiro monarca do Egipto, para seu filho predilecto queria Teofrasto, o sucessor de Aristóteles. Mas Teofrasto não saíra de Atenas; mandara-lhe um estudante razoavelmente bom, Estrabão, que depois (mas isso ele não podia prever) se tornaria seu sucessor. Portanto, para a dinastia macedónia dos Lágidas, que, mais do que qualquer outra, gabava-se de uma descendência directa de Filipe (Ptolomeu deixava que dissessem que seu verdadeiro pai era Filipe, e Teócrito chega a tecer detalhes sobre essa insinuação no Encómio a Ptolomeu), a relação com a escola de Aristóteles era, em certo sentido, hereditária. O próprio pai de Aristóteles havia sido o médico pessoal do rei macedónio. Isso explica por que Demétrio optou sem hesitação por Alexandria. Ele também havia pertencido à escola: fora aluno de Aristóteles e amigo de Teofrasto, e quando governou Atenas favoreceu sob todas as formas aquela associação fechada, um tanto malvista, de metecos. Agora que seu protector Cassandro sofrerá um derrota que comprometia também a ele, Demétrio refugiava-se junto aos Ptolomeus, que, ademais, eram parentes de Cassandro e seu pai Antipater, regente da Macedónia desde a morte de Alexandre. Levou ao Egipto o modelo aristotélico, e f oi esta a chave de seu sucesso.

Esse modelo, que havia colocado o Perípato na vanguarda da ciência ocidental, era agora adoptado em grande estilo e sob protecção real em Alexandria. A tal ponto que se disse posteriormente, num anacronismo apenas aparente, que Aristóteles ensinara aos reis do Egipto como se organiza uma biblioteca. Disse-se também que Demétrio havia recomendado a Ptolomeu constituir uma colecção dos livros sobre a realeza e o exercício do mando e lê-los, e que até fora ele a dar início, tendo-se tornado íntimo do soberano a ponto de ser definido como o primeiro de seus amigos, à legislação lançada por Ptolomeu. Intrigante como era, porém, não resistiu, tendo chegado a tais alturas, ao impulso de dirigir pessoalmente a política dinástica do soberano. Ptolomeu tinha filhos de primeiras núpcias com Eurídice, e quatro filhos de Berenice, uma viúva experiente e de grande fascínio, originária de Cirene. Berenice chegara a Alexandria junto com Eurídice. A convivência dos três na corte fora excelente. Mas Ptolomeu começou a preferir um de seus quatro filhos com Berenice, a ponto de querer associá-lo ao trono. Era isso que preocupava Eurídice. Demétrio se intrometeu nessa questão delicada, tomando o partido de Eurídice, talvez também por ser Eurídice filha de Antipater. Talvez tivesse pensado que dificilmente Ptolomeu acabaria por se ligar dinasticamente a uma família de senhores locais, em vez dos donos do reino macedónio. E começou a alertar o soberano, tocando numa tecla que lhe parecia eficaz: se deres a um outro, repetia-lhe, depois ficarás sem nada. Mas não conseguiu chegar a lugar algum com seus argumentos um pouco mesquinhos. Ptolomeu já estava decidido a associar-se ao filho predilecto. Eurídice compreendeu que não havia mais nada que pudesse fazer e, desesperançada, deixou o Egipto. Pouco depois, no início do ano 285 a.C., o jovem Ptolomeu foi oficialmente colocado ao lado do pai, e dividiu com ele o reinado por três anos, até à morte do Só ter. Tornando-se o único soberano, pensou em se livrar de Demétrio: mandou prendê-lo, ou talvez apenas mantê-lo sob vigilância, antes de tomar uma resolução definitiva sobre ele. Assim, Demétrio estava novamente por baixo, como no tempo de sua miserável estada em Tebas, quando as palavras inutilmente previdentes de Crates apenas divertiam, mas não o afectavam. Isolado, sob estrita vigilância, num vilarejo do interior, um dia estava dormitando. Sentiu de repente uma dor lancinante na mão direita, que, durante o sono, pendia ao lado. Quando percebeu que fora mordido por uma serpente, já era tarde demais. Evidentemente, o incidente fora arquitectado por Ptolomeu». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT