sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Não consigo desligar esse alarme e não entendo por quê. Deixe-me ver. O homem vê os dados que aparecem no computador e tecla algo nele…»

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Anno Domini MMVI
«(…) Para Sarah Monteiro, nada se equipara à cidade metropolitana de Londres, que agora sobrevoa de volta à sua casa em Belgrave Road. O avião vem de Portugal, Lisboa, e lança-se à pista em infindáveis manobras há cerca de meia hora. Mas, para Sarah Monteiro, tudo aquilo era um prazer, depois de quinze dias de férias na casa dos pais, um capitão do exército e uma professora inglesa; daí o "h" que acompanha o belo nome Sara, influência da origem britânica materna, bem como do gosto por tudo que é britânico. Não que não goste de Portugal, longe disso: é um país lindo e fantástico, mas com longo caminho a trilhar em termos de personalidade. Apesar da idade avançada de suas fronteiras, as revoluções foram muitas e as renovações, poucas. À parte tudo isso, para Sarah, Portugal é paragem obrigatória, duas a três vezes ao ano, mais os natais, pois os pais fixaram residência no Alentejo, numa área rural perto de Beja, e respirar aquele ar do campo, muito diferente do da capital britânica, é algo sem o qual já não consegue viver. O avião aterra de maneira suave, embora a mais suave das aterragens carregue sempre uma dose de solavancos e sacudidelas. Apesar do longo caminho até a área de desembarque, uns bons vinte minutos, todos se levantam e se acotovelam para serem os primeiros a pegar as bagagens de mão e a sair do avião. Acabamos de aterrar no aeroporto de Heathrow. São seis e meia da tarde, mesmo horário de Lisboa. Na capital britânica faz vinte e um graus centígrados. Permaneçam sentados e com os cintos apertados até a parada total da aeronave. Obrigado por voarem pela nossa Companhia, declara a hospedeira de bordo, mas quem lhe presta atenção? Apenas duas ou três pessoas, Sarah entre elas, que está acostumada ao entra-e-sai de aviões, se não para ir a Portugal ver os pais, para outros destinos, outras capitais e cidades; ossos do ofício de uma correspondente de vários jornais e emissoras da Europa, em Londres. Facto interessante os estrangeiros lhe pagarem para dar notícias da sua cidade. Tem mais dois dias de férias antes de voltar às redacções, ao corre-corre da notícia, à busca incessante por algo bombástico, sangrento, anómalo.
Agora, sim, o avião parou, e os passageiros se apressam a sair pela porta da frente. É hora de pegar seu notebook e sua valise e sair. Pelo caminho, liga para os pais e diz que chegou bem; mais tarde falarão pela internet, quando chegar em casa. Percorre os longos corredores em verde e preto e coloca-se na fila da imigração. São os procedimentos legais que cada terra soberana inventa para si mesma; porém todos acabam se entendendo, ou não seriam as viagens possíveis para lado nenhum, por fecharem as portas uns aos outros, o que às vezes acontece. Cidadãos da União Europeia, da Suíça e dos Estados Unidos para um lado, cidadãos de outras nacionalidades para outro, todos com o passaporte na mão. Sarah é a próxima e aguarda junto à linha amarela, para não invadir o espaço do senhor de óculos que está à frente ou para não confundir o funcionário sentado atrás de um balcão. Next, please. O próximo, por favor. A expressão no semblante do homem é de poucos amigos; bem podia ter escolhido outro guichê; a funcionária ao lado parece bem mais simpática, o sorriso não engana, mas o que está feito, está feito. Estende-lhe o passaporte e oferece-lhe seu melhor sorriso. É bom estar de volta. Como tem estado o tempo?, Pergunta circunstancial, apenas para iniciar conversa. Não consigo vê-lo daqui, responde o homem. Não acordou bem, com certeza, ou a desavença com a patroa, se é que existe, foi feia. Caso contrário, o problema dele é a falta de patroa, facto por que o mau humor deve ser constante. Há alguma coisa errada com o seu passaporte. Desculpe? Como assim? Um problema com o passaporte? Podia mostrar a identidade... Mas nunca dera problema, então por que razão daria agora? Porcaria de computadores! O telefone do guichê toca, e o funcionário mal-encarado atende. Horatio, o nome do funcionário, a julgar pelo crachá de identificação cravado no casaco, ouve o interlocutor. Sim, mas o passaporte não passa. Volta a ouvir e depois desliga o telefone. Agora está tudo bem. Pode passar. Obrigada.
Estranho, o infeliz do homem mexeu mesmo com seus nervos; agora só falta encontrar um taxista do mesmo tipo para a noite acabar bem. Ainda faltava ir buscar a mala, mais uma hora, isso se não houvesse extravios. Na sala de comando central, em algum lugar dentro do aeroporto, um computador dá um alarme. O funcionário, um jovem na casa dos vinte, para sermos precisos teríamos de lhe perguntar, coisa que não parece de bom-tom, tendo em vista que se encontra pronto para responder a um alarme que começou a piscar no computador. O pão nosso de cada dia, nesse caso, o pão dele, são coisas que estão sempre acontecendo. O jovem está vestido com camisa branca e calça preta; o volume dos ombros o denuncia como um agente da polícia que está neste momento descobrindo a origem do alarme que ainda pisca, vermelho. Foi um passaporte que o accionou, possivelmente adulterado ou inválido, ou caducado. Ele observa a câmera de segurança: uma mulher bonita, na casa dos trinta, está em frente ao guichê número onze, o de Horatio, um viúvo chato, embora escrupuloso; nada passará por ele se não estiver bem. Portanto, o que o jovem tem a fazer é anular o alarme e deixar o funcionário fazer o resto. Mas o procedimento de cancelamento do aviso não funciona. Isso nunca lhe havia acontecido. O melhor é chamar o superior. Senhor? Um homem de cabelos grisalhos, na faixa dos cinquenta anos, aproxima-se dele e inclina-se sobre o computador. Sim, John. Chama-se John o nosso jovem. Nunca poderíamos ter adivinhado nome tão corriqueiro. Não consigo desligar esse alarme e não entendo por quê. Deixe-me ver. O homem vê os dados que aparecem no computador e tecla algo nele, o que faz aparecer algumas informações, como o nome de Sarah Monteiro e alguns dados que passam muito depressa. Não se preocupe, John. Tratarei disso. O homem dirige-se ao telefone e o pega. Olá, Horatio, é o Steve. Deixe-a entrar. Sim, não se preocupe, deixe-a entrar, está tudo sob controle. Coloca o dedo no botão que cessa a chamada e, sem pousar o telefone, faz outra. Ela acaba de chegar». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT