sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «É quase hora de fechar, mas ele não se constrange e continua a contemplar, quase sem pestanejar, a obra de Diego Velázquez, As Meninas, a pérola do museu»

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Anno Domini MMVI
«(…) As coisas não correram tão mal: só havia se passado meia hora e Sarah já estava dentro do táxi, fora do Terminal Dois, pronta para ir para casa. Belgrave Road, please, seguido do número que não divulgaremos por razões de privacidade, tão boas quanto outra qualquer. Mais meia hora ou quarenta minutos, dependendo do trânsito, e poderá tomar o tão desejado banho de espuma com a banheira quase transbordando, sais balsâmicos para perfumar o ambiente, morango e baunilha, uma mistura poderosa que relaxa os músculos e tranquiliza o espírito, se é que ele alguma vez se inquieta. Contorna a Victoria Station, sempre cheia de gente, e entra mais à frente na Belgrave Road, repleta de hotéis baratos, de um lado e do outro, e com muita gente carregando malas em ambas as calçadas. Uma rua tipicamente londrina; quase todas as casas com duas colunas sustentando o pórtico frontal, uma de cada lado, algumas trabalhadas, outras lisas, dependendo do gosto do construtor ou do proprietário. Casas centenárias, vitorianas, sem dúvida, mas sem mácula nas pinturas recentes, naquelas fachadas não é de ladrilho acastanhado. O táxi vai praticamente até o final da rua. Perto da sua porta, o motorista se vê obrigado a travar bruscamente, fazendo com que Sarah quase choque contra as protecções de vidro do veículo, destinadas a separar o taxista de clientes perniciosos. Um carro negro, de vidros escuros, colocara-se de repente à frente deles e permanecia parado, pouco se importando com quem estava atrás. O homem do emblemático carro de aluguel londrino aperta a buzina, enrubescido pela fúria. Move on!, grita ele para o da frente, que continua imóvel. Get the fuck out of the way! A fila de carros fica cada vez maior. Ouvem-se mais buzinas e queixas de motoristas apressados. O condutor do carro da frente baixa o vidro e coloca a cabeça para fora, na direcção do taxista inglês, profere um Sorry, mate e segue viagem.
Segundos depois o táxi pára em frente à porta de Sarah Monteiro, e o taxista é gentil o bastante para lhe tirar a mala. Depois de recebidas as libras devidas, ele parte em direcção a outros clientes, outros desejos, outras libras esterlinas. Ao entrar em casa, Sarah depara logo com um monte de correspondência espalhada no chão. Postais de colegas, contas para pagar e, claro, propaganda de todos os tipos, e mais coisas para as quais não tem paciência nesse momento. Leva a mala até ao quarto, no primeiro andar, vai encher a banheira e relaxa; afinal de contas, é a sua casa. Precisa de algumas coisas da mala e a abre, encontrando-a sem a chave. Nota esse facto; as fechaduras estão todas abertas, e ela se lembra de as ter fechado. Até se recorda onde, a que horas, o que mais estava fazendo, com quem falava e o que dizia quando as fechou. Dentro, a roupa está revirada; alguém tinha aberto sua mala entre o Aeroporto da Portela e o de Heathrow. O melhor é ir lá, o que fará amanhã de manhã. Só lhe faltava essa! Tenta ver se falta alguma coisa na mala, mas, apesar de estar remexida, nada lhe parece a menos, tampouco a mais. Dois minutos depois, está na banheira, desfrutando da bendita espuma e dos benditos sais, e mel em vez de baunilha, porque este acabara; mas o efeito é o mesmo: relaxante, repousante, calmante. Já nem se lembra da mala nem do mal-humorado funcionário do aeroporto. Mais tarde, no meio de toda a pilha de correspondência, consegue abrir um envelope e vê o nome do remetente: Valdemar Firenzi.

Muito se poderia dizer do quadro para onde esse homem olha. A infanta Margarita, ao meio, e Isabel Velasco e Agustina Sarmiento, de ambos os lados; dois anões, do lado direito de quem vê, que fique bem claro; María Barbola e Nicolas Pertusato, este último com um pé em cima de um cão que dormitava. Atrás, nas sombras, Duenna Marcela de Ulloa com um homem não identificado, coisa difícil de acreditar, pois os pintores não são homens capazes de colocar objectos não identificáveis nas telas. Tudo tem o seu significado, e, se não se sabe quem é, assim quis o artista, também ele auto-retratado na própria pintura, à esquerda, exercendo o seu ofício para a posteridade: pintar as magnânimas figuras de Filipe IV e de dona Mariana reflectidas num espelho por trás dele, pois de outra forma não conseguiríamos ver o reflexo do seu trabalho, já que a tela está de costas para nós. Para terminar, o contramestre da rainha, José Nieto Velázquez, que está à porta, de saída. Belíssimo quadro, sem dúvida, mas não é ele que nos interessa, mas o homem que para ele olha. Convém esclarecer o local onde esse homem observa o quadro: é a sala número três do Museo Nacional del Prado, em Madrid. É quase hora de fechar, mas ele não se constrange e continua a contemplar, quase sem pestanejar, a obra de Diego Velázquez, As Meninas, a pérola do museu.
Señor, está na hora de fechar. Por favor, encaminhe-se para a saída, adverte educadamente um jovem segurança, porque há que respeitar os homens de idade, como esse que olha para o quadro que bem sabemos. O segurança é zeloso e quer se certificar de que sua ordem, proferida em forma de pedido, seja cumprida. Conhece-o de vista, dali, daquele mesmo local, onde o vê quase todos os dias olhando interminavelmente para o quadro, durante horas e horas; os turistas passando e ele, ali, como um quadro a olhar para outro. Alguma vez admirou esta pintura?, pergunta o homem. O segurança olha ao redor: não há mais ninguém ali, então a pergunta deve ser para ele. Está falando comigo? O homem o ignora e continua a fitar o quadro. Alguma vez admirou esta pintura?, repetiu. Mas é claro! Este quadro é como a Mona Lisa no Louvre. Tolice. Diga-me o que vê. O segurança se acanha. O homem aparenta ter uma cultura acima da média, se é que essas coisas se veem assim a olho nu; falar demais só provocará embaraço». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT