sábado, 3 de dezembro de 2016

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «Algumas velhas, que as castanholas bocais do Napoleão haviam despertado de letargias de pedra, chinelavam ao acaso de cadeira em cadeira idênticas a pássaros sonolentos»

jdact e wikipedia

«(…) Surpreendia-se que para além de tiques e de gestos a natureza se não houvesse empenhado em transmitir-lhes também, a título de bónus, os poemas de Eliot que conhecia de cor, a silhueta de Alves Barbosa a pedalar nas Penhas da Saúde, e a aprendizagem já feita do sofrimento. E por detrás dos sorrisos delas distinguia alarmado a sombra das inquietações futuras, como no seu próprio rosto percebia, olhando-o bem, a presença da morte na barba matinal. Procurou na argola das chaves a que abria a porta da enfermaria (o meu lado de governanta, murmurou, a minha faceta de despenseiro de navios inventados disputando aos ratos as bolachas-maria do porão), e entrou num corredor comprido balizado por espessas ombreiras de jazigo atrás das quais se estendiam, em colchas duvidosas, mulheres que o excesso de remédios transformara em sonâmbulas infantas defuntas, convulsionadas pelos Escoriais dos seus fantasmas. A enfermeira-chefe, no seu gabinete de dr. Mabuse, recolocava a dentadura postiça nas gengivas com a majestade de Napoleão coroando-se a si mesmo: os molares ao entrechocarem-se produziam ruídos baços de castanholas de plástico, como se as suas articulações fossem uma criação mecânica para edificação cultural de estudantes do liceu ou dos frequentadores do Castelo Fantasma da Feira Popular, onde o cheiro das sardinhas assadas se combina subtilmente com os gemidos de cólica dos carrosséis. Um crepúsculo pálido boiava permanentemente no corredor e os vultos adquiriam, aclarados pelas lâmpadas desconjuntadas do tecto, a textura de vertebrados gasosos do Deus rive-gauche do catecismo, que ele imaginava sempre a evadir-se da colónia penal dos mandamentos para passear livre, nas noites da cidade, a cabeleira bíblica de um Ginsberg eterno. Algumas velhas, que as castanholas bocais do Napoleão haviam despertado de letargias de pedra, chinelavam ao acaso de cadeira em cadeira idênticas a pássaros sonolentos em busca do arbusto onde ancorar: o médico tentava em vão decifrar nas espirais das suas rugas, que lhe lembravam as misteriosas redes de fendas dos quadros de Vermeer, juventudes de bigodes encerados, coretos e procissões, alimentadas culturalmente por Gervásio Lobato, pelos conselhos dos confessores e pelos dramas de gelatina do dr. Júlio Dantas, unindo fadistas e cardeais em matrimónios rimados. As octogenárias pousavam nele os olhos descoloridos de vidro, ocos como aquários sem peixes, onde o limo ténue de uma ideia se condensava a custo na água turva de recordações brumosas. A enfermeira-chefe, a cintilar os incisivos de saldo, pastoreava aquele rebanho artrítico enxotando-o a mãos ambas para uma saleta em que o televisor se avariara num hara-kiri solidário com as cadeiras coxas encostadas às paredes e o aparelho de rádio que emitia, com sobressaltos felizmente raros, longos uivos fosforescentes de cachorro perdido na noite de uma quinta. As velhas tranquilizavam-se a pouco e pouco como galinhas salvas da canja na capoeira de novo em sossego, mastigando a pastilha elástica das bochechas em ruminações prolixas sob uma oleografia piedosa na qual a humidade devorara os biscoitos das auréolas dos santos, vagabundos antecipados de um katmandu celeste. A sala de consultas compunha-se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferro-velho desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos rasgões dos assentos como cabelos por buracos de boina, de uma marquesa contemporânea da época heróica e tísica do dr. Sousa Martins, e de uma secretária que abrigava na cavidade destinada às pernas um cesto de papéis enorme, parturiente carunchosa afligida por um feto excessivo. Em cima de um naperon enodoado uma rosa de papel cravava-se na sua jarra de plástico como a bandeira remota do capitão Scott nos gelos do pólo Sul. Uma enfermeira parecida com a dona Maria II das notas de banco em versão Campo de Ourique comboiou na direcção do psiquiatra uma mulher entrada na véspera e que ele não observara ainda, ziguezagueando de injecções, de camisa a flutuar em torno do corpo como o espectro de Charlotte Brontë vogando no escuro de uma casa antiga. O médico leu no boletim de internamento esquizofrenia paranóide; tentativa de suicídio, folheou rapidamente a medicação do Serviço de Urgência e procurou um bloco na gaveta enquanto um sol súbito aderia, jovial, aos caixilhos. No pátio em baixo, entre os edifícios da 1.a e 6.a enfermarias de homens, um negro de calças pelos joelhos masturbava-se freneticamente encostado a uma árvore, espiado com gáudio por um grupo de serventes». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT