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«(…)
O forasteiro inclinou-se para diante e com dificuldade pegou nas flechas que tinham
caído da aljava, formando com elas um pequeno feixe que segurou como uma faca,
como se se quisesse defender. Traz-me um curandeiro implorou na sua língua. Os
trovões rugiam a ocidente e as folhas das aveleiras estremeceram quando uma
rajada de vento frio anunciou a tempestade. O forasteiro olhou de novo Lengar
nos olhos e não viu neles piedade. Apenas a satisfação que Lengar encontrava na
morte. Não, disse. Não, por favor. Lengar soltou a flecha. Estava só a cinco passos
do forasteiro e a pequena seta atingiu o alvo com força doentia, empurrando o
homem para o lado. A flecha enterrou-se profundamente, deixando apenas a ver-se
sobre o peito do forasteiro um palmo da sua haste, enfeitada com penas pretas e
brancas. Saban pensou que o Fronteiriço estava morto porque não se mexeu
durante muito tempo, mas depois o feixe de setas que fizera cuidadosamente
caiu-lhe da mão, quando se esforçou por se endireitar. Por favor disse em voz
baixa.
Lengar!
Saban agitava-se nas aveleiras. Deixa-me ir buscar o pai. Calado! Lengar
retirara uma das suas flechas de penas negras da aljava e colocara-a no arco
curto. Caminhou na direção de Saban, apontando-lhe o arco, sorrindo ao ver o
terror no rosto do meio-irmão. O forasteiro olhava também para Saban, vendo um
rapaz alto e bonito, com cabelo negro emaranhado, olhos ansiosos. Sannas
implorou o forasteiro a Saban, leva-me a Sannas. Sannas não vive aqui disse
Saban, entendendo apenas o nome da feiticeira. Nós vivemos aqui anunciou
Lengar, apontando agora uma flecha sua ao forasteiro. És um Fronteiriço, dos
que roubam o nosso gado, escravizam as nossas mulheres e enganam os nossos
mercadores. Soltou a segunda flecha que, como a primeira, bateu no peito do
forasteiro, desta vez nas costelas do lado direito. Mais uma vez o homem tombou
para o lado e de novo se esforçou por se endireitar como se o seu espírito
recusasse deixar-lhe o corpo ferido.
Posso
dar-te poder disse, enquanto um fio de sangue borbulhante lhe escorria da boca
para a barba curta. Poder murmurou. Mas Lengar não entendia a língua do homem.
Disparara duas flechas e mesmo assim o homem recusava-se a morrer, de modo que
pegou no seu arco, colocou uma flecha na corda e enfrentou o forasteiro.
Esticou para trás a arma enorme. O forasteiro abanou a cabeça, mas já conhecia
o seu destino; olhou então Lengar nos olhos para lhe mostrar que não tinha medo
de morrer. Amaldiçoou o seu assassino, embora duvidasse que os deuses o
escutassem, pois era ladrão e fugitivo. Lengar soltou a corda e a flecha de
penas pretas enfiou-se no coração do forasteiro. Deve ter morrido
imediatamente, porém tentara ainda erguer o corpo, como se quisesse desviar-se
da seta de sílex; depois caiu, estremeceu enquanto lhe batia o coração e ficou
imóvel. Lengar cuspiu na mão direita, esfregando depois o cuspo no interior do
pulso esquerdo, onde o arco do forasteiro lhe tinha ferido a pele; ao olhar
para o meio-irmão, Saban percebeu a razão por que o forasteiro usava a fita de
pedra no braço. Lengar executou uns passos, celebrando a morte, mas estava
nervoso. Não tinha a certeza se o homem estava realmente morto, pois
aproximou-se do corpo com todo o cuidado, tocando-lhe com a extremidade de osso
do arco, preparado para saltar para trás, se o corpo voltasse à vida e se
atirasse a ele, mas o forasteiro não se mexeu.
Lengar
aproximou-se de novo para arrancar a bolsa da mão do forasteiro já morto, afastando-a
do corpo. Olhou por uns momentos o rosto acinzentado do cadáver e depois,
confiante de que o espírito do homem tinha de facto partido, arrancou o cordão
que atava a bolsa. Espreitou para dentro dela, ficou imóvel um instante e depois
gritou de alegria. Tinham-lhe dado o poder. Saban, aterrorizado pelo grito do
irmão, recuou, mas em seguida avançou de novo, enquanto Lengar esvaziava o
conteúdo da bolsa na relva, junto à caveira esbranquiçada do boi. Para Saban,
parecia que um raio de sol se tinha escapado dela. Havia dezenas de pequenos
ornamentos de ouro, em forma de losango, cada um deles do tamanho da unha de um
polegar e quatro placas grandes, também com a forma de losangos, com as
dimensões de uma mão. Os losangos, grandes e pequenos, tinham pequenos
orifícios feitos nos vértices, de modo a poderem ser metidos num tendão ou
cosidos numa peça de vestuário; todos eles eram feitos de folhas de ouro muito
finas, com linhas rectas gravadas, embora o padrão nada significasse para
Lengar que arrancou a Saban um dos mais pequenos, que este se atrevera a
apanhar da relva. Lengar juntou-os todos, grandes e pequenos, num monte. Sabes
o que é isto? perguntou ao irmão mais novo, apontando para lá. Ouro respondeu
Saban». In Bernard Cornwell, Stonehenge, 1999, Editora HarperCollins, 2008,
Editora Record, tradutor Alves Calado, ISBN 978-850-107-985-5.
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