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O que
contam as andorinhas
«(…)
Não, mas... Sejamos dissimulados, meu amigo, aceitemos o que a vida neste lanço
nos impõe... Como posso eu...? Fujamos, mi vida. Nem que seja para encontrarmos
lá longe, nos bosques da Madeira, um outro túmulo para a nossa desgraçada paixão...
Mi vida, dizes tu?... Cariño! Mi muerte. Não, não. Morrer, não. Serei cínica, se
necessário. Atrás de máscara esconderei o tesouro do meu, do nosso amor... Depressa,
depressa, manas, que vem aí uma carruagem. Não lhe ouvis o rodar? Avisai os
namorados. Que agitação é esta em nossa volta? Caem folhas do salgueiro com o
revoar das andorinhas a trissarem aflitas... Meu tio que chega! Vai, meu amigo.
Um último beijo. Adeus! Assim te hei-de deixar? Vai. Haveremos de nos encontrar...
um dia... um dia... qualquer dia... Adeus! Adeus! Como corre para casa a condessinha
de Vila Nova! Já entra a porta. Pela álea de buxos altos, caminha Francisco Manuel
para a saída do jardim. Recolhe-se um pouco no escuro de um cipreste, a evitar o
encontro com dom Gregório, que vem de cenho carregado: viu lá fora o cavalo do jovem,
estuga o passo... Depressa, depressa! Espreitemos pela janela!... Entra de rompante
no salão: não te havia ordenado, senhora, que não recebas nunca mais esse...
esse... esse impertinente? O senhor meu tio... Não me trates por tio. Sou teu noivo
e exijo... esquece-se de que estou em minha casa e não acato ordens de ninguém.
De ninguém? Por Deus, que hás-de receber ordens de teu marido. Ainda não,
senhor, ainda não. Esse impertinente é meu primo, que bem o sabeis, e veio despedir-se.
Vai embarcar na Companhia dos Aventureiros.
Ai, manas!
Escondamo-nos, que ele, de estomagado, virou costas à menina e vem espreitar cá
para fora. Bem o vejo daqui a afastar-se em sua montada. Pois que vá e não volte
mais. O mar o engula ou o estoire um pelouro de ferro coado. Quanto a vós,
senhora... Ah! Ela desapareceu! Mordomo! Mordomo! O senhor chamou? Diz à senhora
dona Branca que desejo falar-lhe. A senhora recolheu a seus aposentos e dispôs
que ninguém a incomode. Ninguém? E, quem sou eu? Faz o que te ordeno. As ordens
da senhora são terminantes, senhor: ninguem. Vai-te, vai-te, maldito! Criado imbecil!
Haver-me-ei contigo, quando... Com sua licença, senhor. Mulher voluntariosa! Eu
te amansarei! Sei que nunca terei o teu amor, mas hei-de vergar-te o orgulho. E
tu, Francisco Manuel Melo, eu cavarei a tua desgraça.
Manas,
sigamos o jovem Francisco, não vá ele, em seu desespero… Qual quê? Peito que é fortaleza.
Conheço-lhe a vida desde o nascimento, de a ouvir a meus pais, escutada aos
avós, sabida dos bisavós... Ali vai, em baixo, na Rua Nova. Tão alheado! Com os
pensamentos que lhe alagam a alma, deixa o cavalo ir de passo. Parto... O fado
assim o quer, que nos afasta um do outro. Quem cuidas tu que é o que parte? Aquele
só que convinha que partisse. Parte e caminha de tal jeito que te deixa cá, a ti,
seu melhor quinhão... Ao céu, ao mar, ao vento, ao lenho entregarei a vida. Dos
perigos não tenho medo, mas do regresso. Para minha maior desventura, sei que a
sorte me há-de trazer de volta cedo... Desgraçada sorte, mais não podias fazer...
A quem queixar-me, se o Céu busca que a minha dor soe como ousadia? Tingiste o
meu dano de uma razão que a todos desobrigue, até a ti, e a vista do tomento, do
tirano, me faça calar. A fim de que ninguém se compadeça, traçaste o engano de modo
que a todos o meu mal lhes pareça bem...
Moravam-me
os avós num beiral da travessa do Combro. O cantochão dos frades do convento de
Jesus, que de lá bem se ouviam... São bexigueiros os frades. Rapam o toutiço, enfiam-se
num saco, passam horas do dia a mastigar ladainhas, a estudar, a escrever, a ordenar
Deus, a decantar, a filtrar, a destilar licores, a amanhar a horta, a salmodiar...
O cantochão foi um dia cortado. De repente, por vagidos de criança vindos de uma
janela um pouco abaixo... A alegria que depois sentiam em contar aos filhos, aos
netos... Nunca me esqueci dessa data, não sei porquê... Vinte e três de Novembro
de seiscentos e oito, também me lembra... Talvez por lhes ter dado na toleima sentirem-se
como fadas benfazejas e deitarem-se a predestinar a criança. Uma queria logo que
ela fosse dama da rainha ou duquesa e casasse com um príncipe… A outra
augurava-lhe fosse freira ou madre abadessa de um mosteiro rico e vivesse em cheiro
de santidade... Sem nem saberem se era rapaz ou rapariga...» In
Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, Difel, Difusão
Editorial, 2003, ISBN 972-290-669-0.
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