quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Prisioneiro da Torre Velha. Quare? Fernando Campos. «Desgraçada sorte, mais não podias fazer... A quem queixar-me, se o Céu busca que a minha dor soe como ousadia? Tingiste o meu dano de uma razão que a todos desobrigue»

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O que contam as andorinhas
«(…) Não, mas... Sejamos dissimulados, meu amigo, aceitemos o que a vida neste lanço nos impõe... Como posso eu...? Fujamos, mi vida. Nem que seja para encontrarmos lá longe, nos bosques da Madeira, um outro túmulo para a nossa desgraçada paixão... Mi vida, dizes tu?... Cariño! Mi muerte. Não, não. Morrer, não. Serei cínica, se necessário. Atrás de máscara esconderei o tesouro do meu, do nosso amor... Depressa, depressa, manas, que vem aí uma carruagem. Não lhe ouvis o rodar? Avisai os namorados. Que agitação é esta em nossa volta? Caem folhas do salgueiro com o revoar das andorinhas a trissarem aflitas... Meu tio que chega! Vai, meu amigo. Um último beijo. Adeus! Assim te hei-de deixar? Vai. Haveremos de nos encontrar... um dia... um dia... qualquer dia... Adeus! Adeus! Como corre para casa a condessinha de Vila Nova! Já entra a porta. Pela álea de buxos altos, caminha Francisco Manuel para a saída do jardim. Recolhe-se um pouco no escuro de um cipreste, a evitar o encontro com dom Gregório, que vem de cenho carregado: viu lá fora o cavalo do jovem, estuga o passo... Depressa, depressa! Espreitemos pela janela!... Entra de rompante no salão: não te havia ordenado, senhora, que não recebas nunca mais esse... esse... esse impertinente? O senhor meu tio... Não me trates por tio. Sou teu noivo e exijo... esquece-se de que estou em minha casa e não acato ordens de ninguém. De ninguém? Por Deus, que hás-de receber ordens de teu marido. Ainda não, senhor, ainda não. Esse impertinente é meu primo, que bem o sabeis, e veio despedir-se. Vai embarcar na Companhia dos Aventureiros.
Ai, manas! Escondamo-nos, que ele, de estomagado, virou costas à menina e vem espreitar cá para fora. Bem o vejo daqui a afastar-se em sua montada. Pois que vá e não volte mais. O mar o engula ou o estoire um pelouro de ferro coado. Quanto a vós, senhora... Ah! Ela desapareceu! Mordomo! Mordomo! O senhor chamou? Diz à senhora dona Branca que desejo falar-lhe. A senhora recolheu a seus aposentos e dispôs que ninguém a incomode. Ninguém? E, quem sou eu? Faz o que te ordeno. As ordens da senhora são terminantes, senhor: ninguem. Vai-te, vai-te, maldito! Criado imbecil! Haver-me-ei contigo, quando... Com sua licença, senhor. Mulher voluntariosa! Eu te amansarei! Sei que nunca terei o teu amor, mas hei-de vergar-te o orgulho. E tu, Francisco Manuel Melo, eu cavarei a tua desgraça.
Manas, sigamos o jovem Francisco, não vá ele, em seu desespero… Qual quê? Peito que é fortaleza. Conheço-lhe a vida desde o nascimento, de a ouvir a meus pais, escutada aos avós, sabida dos bisavós... Ali vai, em baixo, na Rua Nova. Tão alheado! Com os pensamentos que lhe alagam a alma, deixa o cavalo ir de passo. Parto... O fado assim o quer, que nos afasta um do outro. Quem cuidas tu que é o que parte? Aquele só que convinha que partisse. Parte e caminha de tal jeito que te deixa cá, a ti, seu melhor quinhão... Ao céu, ao mar, ao vento, ao lenho entregarei a vida. Dos perigos não tenho medo, mas do regresso. Para minha maior desventura, sei que a sorte me há-de trazer de volta cedo... Desgraçada sorte, mais não podias fazer... A quem queixar-me, se o Céu busca que a minha dor soe como ousadia? Tingiste o meu dano de uma razão que a todos desobrigue, até a ti, e a vista do tomento, do tirano, me faça calar. A fim de que ninguém se compadeça, traçaste o engano de modo que a todos o meu mal lhes pareça bem...
Moravam-me os avós num beiral da travessa do Combro. O cantochão dos frades do convento de Jesus, que de lá bem se ouviam... São bexigueiros os frades. Rapam o toutiço, enfiam-se num saco, passam horas do dia a mastigar ladainhas, a estudar, a escrever, a ordenar Deus, a decantar, a filtrar, a destilar licores, a amanhar a horta, a salmodiar... O cantochão foi um dia cortado. De repente, por vagidos de criança vindos de uma janela um pouco abaixo... A alegria que depois sentiam em contar aos filhos, aos netos... Nunca me esqueci dessa data, não sei porquê... Vinte e três de Novembro de seiscentos e oito, também me lembra... Talvez por lhes ter dado na toleima sentirem-se como fadas benfazejas e deitarem-se a predestinar a criança. Uma queria logo que ela fosse dama da rainha ou duquesa e casasse com um príncipe… A outra augurava-lhe fosse freira ou madre abadessa de um mosteiro rico e vivesse em cheiro de santidade... Sem nem saberem se era rapaz ou rapariga...» In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, Difel, Difusão Editorial, 2003, ISBN 972-290-669-0.

Cortesia de Difel/JDACT