quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Senhor do Falcão. Valeria Montaldi. «A água do fosso reflectia o desenho das muralhas, trémulo pelo efeito da corrente. Relativamente perto da ponte que conduzia à cidade através da Porta Comacina, as poderosas rodas de um moinho de cereal»

jdact e wikipedia

Milão. 1226
«(…) O secretário, submerso por aquela tempestade de palavras, deixara-se cair sobre o banco. Os seus olhos, cada vez mais alarmados, seguiam os gestos das mãos com os quais a abadessa acompanhava o seu discurso. Veja, irmão Algiso, o facto de as nossas bocas cantarem as laudes do Senhor não impede os nossos ouvidos de ouvirem o que acontece fora daqui; a cidade precisa de nós para milhares de incumbências e, inevitavelmente, a estas paredes chegam todas as notícias e mexericos ligados à necessidade das gentes, tanto as de baixa como as de alta linhagem. Como podia o irmão pensar que eu ignorava a relação entre Caterina Gisalbertini e o sobrinho do arcebispo, Lanfranco Calgario, se a minha própria família de origem ainda é aparentada com um ramo da sua? Não pode sequer imaginar o horror que senti quando segurei entre as mãos aquele medalhão: por um momento, tudo se apresentou claro aos meus olhos... Passei horas na minha cela a rezar ao Senhor para que me iluminasse sobre o que deveria fazer e provavelmente Ele terá ouvido as minhas preces, porque decidi que não iria calar-me. Por isto quis que informasse o arcebispo. Dependerá da sua decisão fazer com que o escândalo expluda ou não. Se vencer o silêncio, então será a sua consciência a carregar com tudo isto, não a minha. A abadessa calou-se. As mãos juntas sobre o peito tremiam ligeiramente, a pele rosada do rosto testemunhava uma tensão tenazmente controlada: os olhos pungentes, todavia, não largavam nem por um instante, sequer, o rosto do secretário, que, dobrado sobre si mesmo, a ouvia em silêncio. Depois de ter dado um longo suspiro de alívio, a velha freira ergueu-se e dirigiu-se para a porta. O irmão Algiso, incapaz de encontrar as palavras adequadas à resposta, seguiu-a: enquanto fazia menção de se despedir, a freira travou-o interpondo o seu velho corpo ressequido entre ele e a porta. Fico a aguardar notícias do arcebispo e com muita urgência. Para solicitar a sua atenção, refira-lhe também isto. Caterina Gisalbertini tinha no corpo os traços evidentes de um parto ocorrido há poucos dias... Os olhos do secretário dilataram-se, a sua boca abriu-se à procura do ar que lhe faltara. Com um sorriso tenso, a freira abriu a porta, convidando-o a sair. Vá em paz, irmão Algiso, e leve depressa o meu recado... Depois de o pesado batente se ter fechado nas suas costas, a abadessa deixou-se tombar sobre o banco, abandonando os braços.

Milão. 1243
A água do fosso reflectia o desenho das muralhas, trémulo pelo efeito da corrente. Relativamente perto da ponte que conduzia à cidade através da Porta Comacina, as poderosas rodas de um moinho de cereal afundavam os seus mecanismos num canal defluente: o pórtico da grande construção de dois andares apinhava-se de gente que entrava e saía, carregando grandes e volumosos sacos às costas. Alguns patos corriam, batendo as asas, entre os carros parados ao longo da margem, perturbando a serena espera dos cavalos e das mulas.
Ao mesmo tempo que observava, estupefacto, o verde brilhante da erva, mesmo da que cobria a terra à sombra das muralhas, o irmão Matthew ia caminhando ao longo da ponte. Ao chegar a meio da suave encosta, parou para avaliar a dimensão do fosso. Não teria menos de trinta braços de largura e parecia mais fundo ainda. A corrente vigorosa e límpida transportava, aqui e ali, cardumes que nadavam quase à tona de água. Então, irmão, ides mexer-vos daí ou não? Não vedes que o carro não passa se continuardes aí a contar os peixes? Matthew virou-se de repente, mesmo a tempo de evitar o casco escoiceante de um velho cavalo pelado que puxava um pequeno carro carregado de madeira; o homem que o conduzia, de rosto corado, fixava-o, ameaçador. O frade balbuciou umas desculpas e percorreu à pressa os poucos pés que o separavam do largo que se abria em frente da porta. Fechados até meio por grades pesadas e seguras, os arcos da entrada apoiavam-se em duas altas torres de pedra que interrompiam, maciças, a cintura amuralhada. Uma dezena de guardas formava dois grupos de ambos os lados da porta: embora os seus olhos perscrutassem, atentos, a passagem de homens e de mercadorias, os seus rostos pareciam relaxados e as vozes calmas. Assim que transpôs a entrada, o irmão Matthew virou-se para observar a imensidão de andaimes de madeira que se erguia do lado de dentro das torres, formando caminhos sobrepostos; aqui, prontos a defender a cidade em caso de assalto, mais soldados patrulhavam». In Valeria Montaldi, O Senhor do Falcão, 2003, tradução de Maria Irene Carvalho, Editorial Notícias, Editora Casa das Letras, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.

Cortesia de EditorialNotícias/ECdasLetras/JDACT