sábado, 31 de dezembro de 2016

No 31. Canção do Cuco. Frances Hardinge. «Mãe, por favor, me ajuda, está tudo esquisito, tudo errado, e parece que a minha cabeça é feita de pedaços e alguns estão faltando…»

jdact e wikipedia

«(…) Triss fez que sim, lentamente. Não tinha mais ninguém rindo dentro da cabeça dela. Havia ainda um delicado farfalhar, mas bastou olhar para o outro lado do cómodo, para a janela oposta, para facilmente deduzir quem era o culpado. Um galho mais baixo estava prensado no batente, pesado devido aos montes de maçãs verdes, suas folhas afagando o vidro toda vez que o vento o chacoalhava. A luz entrava entrecortada, vacilante, partida em mosaico pela folhagem. O cómodo em si estava tão verde quanto as folhas. Coberta verde sobre a cama, paredes verdes cheias de pequenos diamantes cor de creme, toalhas quadradas de um verde espalhafatoso sobre as mesas de madeira escura. Não havia gás aceso; as lamparinas brancas redondas da parede não mostravam sinal de vida. E foi somente então que, ao olhar em redor com mais minúcia, que a garota percebeu que havia uma quinta pessoa no quarto, espreitando junto à porta. Era outra menina, mais nova que Triss, cabelo escuro frisado, quase uma versão em miniatura da mãe. Contudo, havia algo de muito especial em seus olhos, frios e rígidos como os de um sapo. Ela segurava a maçaneta da porta como se quisesse girá-la, e o maxilar estreito não parava no lugar, fazendo ranger os dentes. A mãe olhou para trás, para acompanhar o olhar de Triss. Ah, olha, a Penny veio ver-te. Pobre Pen… Não comeu quase nada desde que ficaste doente, de tanta preocupação. Entre, Pen, vem aqui sentar perto da sua irmã… Não!, gritou Penny, tão subitamente que todos deram um pulo de susto. Ela está fingindo! Não veem? É fingimento! Ninguém vê a diferença? O olhar da menina estava fixo no rosto de Triss com uma expressão de estilhaçar rocha. Pen. Havia um tom de admoestação na voz do pai. Entre aqui agora e… NÃO! Pen parecia estar louca, desesperada, os olhos escancarados como se estivesse pronta para morder alguém. Saiu às pressas porta fora. Os passos rápidos foram ecoando, sumindo na distância. Não vá atrás, sugeriu o pai gentilmente à mãe, que começara a levantar-se. Assim você a recompensa dando atenção, lembra do que disseram? A mãe suspirou, cansada, mas tornou a sentar-se, obediente. Notou que Triss apoiara-se nos cotovelos, quase tampando os ouvidos, fitando a porta aberta. Não liga p’ra ela, disse gentilmente, acariciando a mão da filha. Sabe como ela é. Sei mesmo? Sei como ela é? É a minha irmã, Penny. Pen. Tem nove anos. Costumava ter amigdalite. O primeiro dente de leite caiu quando ela foi morder alguém. Teve um periquito, mas esqueceu de limpar a gaiola, e ele morreu. Ela mente. Ela rouba. Ela grita e atira coisas. E…, e ela me odeia. Odeia de verdade. Posso ver nos olhos dela. E não sei por quê. Por um momento, a mãe ficou ao lado da cama e fez Triss ajudá-la a cortar moldes para um vestido com uma enorme tesoura de cabo de casco de tartaruga que retirara de uma caixa de costura que insistia em trazer nas férias. As tesouras deslizavam com um barulhinho baixo e gutural, como se apreciassem cada centímetro. Triss sabia que adorava aplicar padrões ao tecido, cortá-lo para então ver os pedaços de fazenda lentamente comporem uma forma, eriçados de alfinete e guarnecidos de bainhas de beirada irregular. Os modelos vinham com fotos de moças em tom pastel, algumas de casaco comprido e chapéus de belo formato, outras com turbantes e vestidos longos que caíam rectos feito pendões. Todas jaziam lânguidas, como se fossem bocejar do modo mais elegante possível. Sabia que era um regalo poder ajudar a mãe na costura. Era a diversão usual, notara, para quando ficava doente. Naquele dia, contudo, as suas mãos estavam bobas e estabanadas. As grandes tesouras pareciam impossivelmente pesadas e vacilavam na mão dela, quase como se dançassem, rebeldes, entre os seus dedos. Depois da segunda vez em que quase pegara os próprios nós dos dedos entre as lâminas. Ainda não está muito bem, não é, querida? Por que não lê uma revistinha? Havia cópias intactas de Sunbeam e Golden Penny na mesa de cabeceira. Entretanto, Triss não conseguiu concentrar-se nas páginas à sua frente. Ficara doente outras vezes, sabia disso. Muitas, muitas vezes. Porém sabia que jamais acordara com essa terrível vagueza. O que tem de errado com as minhas mãos? O que tem de errado com a minha cabeça? Ela queria gritar alto. Mãe, me ajuda, por favor, me ajuda, está tudo esquisito, tudo errado, e parece que a minha cabeça é feita de pedaços e alguns estão faltando…» In Frances Hardinge, Canção do Cuco, 2014, Novo Século Editora, Le Livros, 2015, EISBN 978-854-280-633-5.

Cortesia LeLivros/NSéculoE/JDACT