quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Um largo sorriso abriu-se ao longo do rosto do prelado. O grupo fundiu-se em abraços de felicidade. Como previra o cardeal, a missão estava votada ao sucesso»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Entretanto, o peregrino viu Labin entrar acompanhado de outra eminência. Atreveu-se a ler-lhe os pensamentos e percebeu que trazia consigo a semente da desconfiança. Bem-vindo, dom José Canosa! Temos boas notícias!, informou Payá, regozijando-se interiormente. Boa noite, dom Miguel! Sim, já me constou. Temos uns ossos, não é?, perguntou o deão do cabido, do alto de um olhar seco e rosto majestático. Nartallo não tem a certeza, mas parece que sim… E devem ser bem antigos!… O cheiro quase o matava. Payá controlou-se, para que fosse o céptico a comprovar com o próprio nariz. Entretanto, a notícia correra pelo paço episcopal. Blanco Barreiro e vários outros cónegos não tardaram a aparecer no templo. O peregrino ardia de curiosidade para saber se era chegada a hora do motivo que ali o trouxera. Viu o cardeal conferenciar com López Ferreiro e o amigo secular, o jovem marquês galego filho de amigos íntimos, que se mostrara interessado em acompanhar os trabalhos. O que achais que devo fazer? Mandar abrir o túmulo agora e verificarmos o que está dentro, ou esperar que cheguem os peritos? Vários argumentos foram arrazoados pelos presentes. Só dom José Canosa achou mais prudente aguardar pelos peritos. A maioria, liderada pelos argumentos do cónego Jacobo Blanco Barreiro, tendeu para o que desejava o cardeal. Alegava, com o agrado de Payá, que os científicos teriam muito tempo, a partir do dia seguinte, para investigar e certificar os achados. E que ninguém conseguiria dormir sem conhecer o conteúdo do sarcófago. Abra-se o túmulo!, foi a sentença do cardeal. Vamos abri-lo!, ordenou Labín aos dois trabalhadores. Apressaram-se, então, a retirar mais pedras do pavimento para ampliar a entrada para o espaço vazio no subsolo da catedral. Quando conseguiram largueza para entrar mais à vontade, um silêncio sepulcral alojou-se entre as paredes do templo. Dom Miguel reparou, pela primeira vez, que trovejava e chovia torrencialmente. Um sinal do apóstolo, pensou, lembrando-se que ele era o Filho do Trovão. Tossicou, com os fumos e cheiros que ali se acumulavam. O santo fez um milagre… Não tenho dúvidas que fez um milagre! A Galiza pode orgulhar-se do seu santo… Patrono da Espanha, não é?!
Payá olhou para o lado, estupefacto. Aquela voz com sotaque não era de nenhum dos cónegos, mas do esfarrapado peregrino que encontrara à porta e espreitava agora para dentro do buraco. O que fazes tu aqui, homem de Deus?! Sou um peregrino, senhor cardeal! E entras para a catedral com um cão?! Diógenes também é criatura de Deus, Eminência! Payá franziu o sobrolho e deu um passo em frente, fixando-se na verruga do estrangeiro. De onde vens?!, perguntou, desconfiado. De longe… Da cidade de Tréveris, na Alemanha. Não imagina, senhor cardeal, o tempo e as penas por que passei para aqui chegar… Mas cheguei na hora certa!, afirmava, sorrindo, com o cachorro ao lado, abanando a cauda. Estou muito feliz! Não devias estar aqui…, resmungou o cardeal. Vossa Eminência não me vai proibir de venerar as sagradas relíquias do santo, pois não?! Esta não é a melhor altura, respondeu, quando se ouviam ruídos do interior do subsolo. Como te chamas? A mim…, chamam-me O Cristo… Payá olhou de esguelha para o peregrino e desfez-se numa gargalhada. Vá, se és O Cristo, fica por aí, mas não atrapalhes. Vais poder ver o teu apóstolo…, condescendeu, crendo tratar-se o romeiro de um bom augúrio para a retoma das peregrinações por que tanto ansiava. O peregrino afagou a cabeça do fiel companheiro e voltou a sentar-se, perante alguns olhares curiosos. Então, o que se passa aí?! Estamos a remover a tampa de lousa, senhor cardeal! Depois de terminar o ruído do arrastamento, seguiu-se um novo silêncio, quer na parte de cima, quer entre os que se encontravam nos trabalhos. Em baixo, os fachos de luz concentravam-se na abertura do sepulcro. O que veem? Ossos e cinzas, senhor cardeal! Parecem muito antigos, respondeu Labin. E também algumas pedras que compuseram um mosaico romano e pedaços de mármore, uns lavrados e outros em bruto… Um largo sorriso abriu-se ao longo do rosto do prelado. O grupo fundiu-se em abraços de felicidade. Como previra o cardeal, a missão estava votada ao sucesso. Ajoelharam-se e rezaram quase todos em profunda devoção. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo e o seu apóstolo Santiago Maior, o patrono da Espanha!, exclamou Payá y Rico, muito feliz.
Dom Miguel imaginara-o e assim se cumpria: aquele dia ficaria para a História e ele também! A descoberta das relíquias que durante tantos séculos se mantiveram escondidas, muito raramente vistas, era um extraordinário acontecimento. Entretanto, o romeiro havia-se ajoelhado, parecendo rezar. Ao ouvir a troca de palavras entre Labin e Payá, ergueu-se, tirou do alforge uma rosa e atirou-a para dentro do buraco, para estupefacção geral. Porque fizeste isso?, questionou, apressadamente, Payá. É uma rosa azul que guardo há muito para este momento. Azul?! Não há rosas azuis, tonto!, respondeu, olhando detalhadamente para a flor que aos seus olhos era cor-de-rosa, enquanto murmurava para o lado: este não está bom da cabeça…, ou é daltónico… Todos se riram. A minha é azul… E onde a arranjaste?!, perguntou, divertido. Nunca vi rosas azuis… Colhi-a na minha terra e guardei-a para esta ocasião, respondeu, com misteriosa serenidade. Mas, de facto, tem razão: não há mais… Não haverá mais… É a última, senhor cardeal… A assistência cochichava freneticamente sobre o insólito a que acabara de assistir. Mas logo as atenções mudaram, radicalmente». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT