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Entretanto, o peregrino viu Labin entrar acompanhado de outra eminência.
Atreveu-se a ler-lhe os pensamentos e percebeu que trazia consigo a semente da
desconfiança. Bem-vindo, dom José Canosa! Temos boas notícias!, informou Payá,
regozijando-se interiormente. Boa noite, dom Miguel! Sim, já me constou. Temos
uns ossos, não é?, perguntou o deão do cabido, do alto de um olhar seco e rosto
majestático. Nartallo não tem a certeza, mas parece que sim… E devem ser bem
antigos!… O cheiro quase o matava. Payá controlou-se, para que fosse o céptico
a comprovar com o próprio nariz. Entretanto, a notícia correra pelo paço episcopal.
Blanco Barreiro e vários outros cónegos não tardaram a aparecer no templo. O
peregrino ardia de curiosidade para saber se era chegada a hora do motivo que
ali o trouxera. Viu o cardeal conferenciar com López Ferreiro e o amigo
secular, o jovem marquês galego filho de amigos íntimos, que se mostrara
interessado em acompanhar os trabalhos. O que achais que devo fazer? Mandar
abrir o túmulo agora e verificarmos o que está dentro, ou esperar que cheguem
os peritos? Vários argumentos foram arrazoados pelos presentes. Só dom José
Canosa achou mais prudente aguardar pelos peritos. A maioria, liderada pelos
argumentos do cónego Jacobo Blanco Barreiro, tendeu para o que desejava o
cardeal. Alegava, com o agrado de Payá, que os científicos teriam muito tempo,
a partir do dia seguinte, para investigar e certificar os achados. E que
ninguém conseguiria dormir sem conhecer o conteúdo do sarcófago. Abra-se o
túmulo!, foi a sentença do cardeal. Vamos abri-lo!, ordenou Labín aos dois
trabalhadores. Apressaram-se, então, a retirar mais pedras do pavimento para
ampliar a entrada para o espaço vazio no subsolo da catedral. Quando
conseguiram largueza para entrar mais à vontade, um silêncio sepulcral
alojou-se entre as paredes do templo. Dom Miguel reparou, pela primeira vez,
que trovejava e chovia torrencialmente. Um sinal do apóstolo, pensou, lembrando-se
que ele era o Filho do Trovão. Tossicou, com os fumos e cheiros que ali
se acumulavam. O santo fez um milagre… Não tenho dúvidas que fez um milagre! A
Galiza pode orgulhar-se do seu santo… Patrono da Espanha, não é?!
Payá
olhou para o lado, estupefacto. Aquela voz com sotaque não era de nenhum dos cónegos,
mas do esfarrapado peregrino que encontrara à porta e espreitava agora para dentro
do buraco. O que fazes tu aqui, homem de Deus?! Sou um peregrino, senhor
cardeal! E entras para a catedral com um cão?! Diógenes também é criatura de
Deus, Eminência! Payá franziu o sobrolho e deu um passo em frente, fixando-se
na verruga do estrangeiro. De onde vens?!, perguntou, desconfiado. De longe… Da
cidade de Tréveris, na Alemanha. Não imagina, senhor cardeal, o tempo e as
penas por que passei para aqui chegar… Mas cheguei na hora certa!, afirmava,
sorrindo, com o cachorro ao lado, abanando a cauda. Estou muito feliz! Não
devias estar aqui…, resmungou o cardeal. Vossa Eminência não me vai proibir de
venerar as sagradas relíquias do santo, pois não?! Esta não é a melhor altura,
respondeu, quando se ouviam ruídos do interior do subsolo. Como te chamas? A
mim…, chamam-me O Cristo… Payá olhou de esguelha para o peregrino e
desfez-se numa gargalhada. Vá, se és O Cristo, fica por aí, mas não
atrapalhes. Vais poder ver o teu apóstolo…, condescendeu, crendo tratar-se o
romeiro de um bom augúrio para a retoma das peregrinações por que tanto
ansiava. O peregrino afagou a cabeça do fiel companheiro e voltou a sentar-se,
perante alguns olhares curiosos. Então, o que se passa aí?! Estamos a remover a
tampa de lousa, senhor cardeal! Depois de terminar o ruído do arrastamento,
seguiu-se um novo silêncio, quer na parte de cima, quer entre os que se
encontravam nos trabalhos. Em baixo, os fachos de luz concentravam-se na
abertura do sepulcro. O que veem? Ossos e cinzas, senhor cardeal! Parecem muito
antigos, respondeu Labin. E também algumas pedras que compuseram um mosaico
romano e pedaços de mármore, uns lavrados e outros em bruto… Um largo sorriso
abriu-se ao longo do rosto do prelado. O grupo fundiu-se em abraços de felicidade.
Como previra o cardeal, a missão estava votada ao sucesso. Ajoelharam-se e rezaram
quase todos em profunda devoção. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo e o seu
apóstolo Santiago Maior, o patrono da Espanha!, exclamou Payá y Rico, muito
feliz.
Dom
Miguel imaginara-o e assim se cumpria: aquele dia ficaria para a História e ele
também! A descoberta das relíquias que durante tantos séculos se mantiveram
escondidas, muito raramente vistas, era um extraordinário acontecimento. Entretanto,
o romeiro havia-se ajoelhado, parecendo rezar. Ao ouvir a troca de palavras entre
Labin e Payá, ergueu-se, tirou do alforge uma rosa e atirou-a para dentro do
buraco, para estupefacção geral. Porque fizeste isso?, questionou,
apressadamente, Payá. É uma rosa azul que guardo há muito para este momento. Azul?!
Não há rosas azuis, tonto!, respondeu, olhando detalhadamente para a flor que aos
seus olhos era cor-de-rosa, enquanto murmurava para o lado: este não está bom
da cabeça…, ou é daltónico… Todos se riram. A minha é azul… E onde a
arranjaste?!, perguntou, divertido. Nunca vi rosas azuis… Colhi-a na minha
terra e guardei-a para esta ocasião, respondeu, com misteriosa serenidade. Mas,
de facto, tem razão: não há mais… Não haverá mais… É a última, senhor cardeal… A
assistência cochichava freneticamente sobre o insólito a que acabara de
assistir. Mas logo as atenções mudaram, radicalmente». In Alberto S. Santos, O Segredo
de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
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