quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Compreensão do Surrealismo em Portugal. António Cândido Franco. «… noite maravilhosa que, em seu ventre, dilatado, sentia germinar um braseiro de sóis, donde saíam, como extintas faúlhas a voar, grandes lágrimas de água e terra escura. […]»

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Das Experiências de Além Mundo ao Supra-real
«(…) Depois de tecer algumas considerações sobre o sonho, de permeio com outras sobre a realidade e a consciência acordada, que com o sonho contrasta, Breton tem a seguinte exclamação: Creio na resolução futura destes dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonha e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer. Espantoso, não posso deixar de exclamar! Antes mesmo de falar de surrealismo Breton fala de surrealidade, quid do surrealismo. E que diz ele? Que a surrealidade é uma realidade absoluta, que resulta da conciliação entre a realidade sensível, da primeira consciência, e o sonho, que é a realidade, mesmo que disfarçada ou travestida, da segunda consciência. Novalis falou dum real absoluto e Frederico Schlegel dum real autêntico por contaste com o real sensível. Como não ver essa espécie de realidade absoluta de que fala Breton, resultante da conciliação entre a realidade dos sentidos e o sonho, como o real absoluto de Novalis, de resto citado no texto de 1924 a partir do paralelismo, mas não da homologia, entre séries ideais de acontecimentos e séries reais. E já agora como não ligar, ao menos por um cordão de luz, essa surrealidade ao mundo das ideias platónicas e à topografia do extra-mundo, com um litoral próximo e bem demarcado e um oceano distante e indefinível, tal como a regista um platónico como Sohravardi? A coincidência não deixa dúvida, para insistir nela. Ainda assim paga a pena acrescentar que a surrealidade está referida ao surreal e que este se entende como supra-real, quer dizer, como além munda, tal o encontrei nas experiências do sujeito lírico de Teixeira de Pascoaes no livro Sombras.
Sombras, noto agora? Sim, espera do entardecer do dia, anseio crepuscular, e exaltação febril da noite escura pelo autor que pouco depois, no seguimento deste livro de 1907, escreverá Senhora da Noite (1909). Quer ver um exemplo desta exaltacão? Pois aí tem o poema Sombra de Deus: noite maravilhosa que, em seu ventre, dilatado, sentia germinar um braseiro de sóis, donde saíam, como extintas faúlhas a voar, grandes lágrimas de água e terra escura. […] Ó noite imensa feita de sóis, de pedras, de alvoradas! Ó noite criadora! Ó noite escura! Ó tenebrosa mãe de Satanás! […]
A noite apaga a realidade sensível e revela o além-mundo, o supra-real, o real autêntico e absoluto; a noite é o lugar de origem, um mundo de anti-matéria, de vazios, de incandescências solares. Experiências de além-mundo, experiências de surrealidade só de noite se experimentam. Sem essa câmara escura, exterior ou interior, impossível contemplar as estrelas ou as ideias. As viagens ao supra-rea1 são nocturnas, quer dizer, a resolução da oposição entre a realidade sensível e o sonho necessita dum estado crepuscular, translúcido, em que as tinturas profundas da noite se misturem ao brilho opaco e esmaltado do dia. Vejo agora que esta resolução a favor dessa nova realidade absoluta que é o supra-real tem tradução em linguagem freudiana. Assim: resolver a oposição entre o sensível e o sonho imaterial, chegar ao estado translúcido crepuscular, é permitir e incentivar o pacto e a ponte entre as duas consciências. É a mascarada dos símbolos a invadir a primeira consciência, a poesia a tomar cona da lógica do real,
a noite a beber o dia». In António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.

Cortesia de Licorne/JDACT