quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A Escrava de Córdova. Alberto S. Santos. «Alguns momentos volvidos, curtos no ciclo do tempo, mas que pareceram intermináveis para todos aqueles desprotegidos colocados ao longo do pequeno curso de água»

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Palacioli, Paço de Sousa, Anégia, ano 997
«Eis que chegou a hora! Acordou abruptamente, muito antes de o sino anunciar a hora de matinas, e levantou-se com aquela convicção bem cravada no seu coração. Ouroana estava certa de que chegara finalmente o momento de cumprir a divina missão para a qual fora chamada. Da sua minúscula cela, situada na parte traseira do Mosteiro, podia ouvir perfeitamente os clamores de dor, de angústia e de espanto dos homens e das mulheres com quem partilhava a vida, e ainda os gritos de guerra entoados numa língua estranha naquela terra, mas que Ouroana tão bem conhecia, a dos seguidores de Maomé. Também não demorou a afligir-se com o cheiro a fumo e a fogo, bem como a tossir a fuligem que entrava pela fresta dos seus austeros aposentos. Aquela imprevista luminosidade alaranjada tinha origem na igreja, onde evoluíam labaredas que rapidamente consumiam a madeira, abalando as estruturas graníticas do mosteiro dedicado a São Salvador, em Paço de Sousa, território de Anégia, Condado Portucalense, no Reino de Leão. Não..., não há qualquer missão... é o fim! Valei-nos, Senhor! Perdoa-me, Cristo, todos os pecados, pois chegou a minha hora!, pensou, ao aperceber-se do inferno que a rodeava, enquanto vestia com urgência o seu hábito. De repente, aquilo para que se havia preparado, a missão que lhe havia sido anunciada com vista à sua salvação, parecia-lhe já uma visão sem sentido.
Afinal não era Cristo aquele homem de branco!, murmurou angustiada. Os pensamentos turvavam-se face ao ruído cada vez mais arrepiante que lhe chegava de todos os lados: os ensurdecedores brados na língua dos árabes misturavam-se com os desesperados choros e lamentos dos irmãos e irmãs do mosteiro e com os tropéis dos cavalos em redor do edifício. A luz labarenta consumia-o, projectando sombras medonhas nas paredes. Como aquela aurora era diferente das outras da sua vida! Mas outra coisa a afligia muito mais: desvanecia-se a certeza que o seu coração detinha desde a Primavera do ano anterior e com a qual acordara momentos antes. Não foi necessário muito esforço para que dois homens magros, de tez morena, nariz adunco, barba comprida e vestidos de preto abrissem a porta da sua cela, apenas segura por um débil ferrolho de madeira. O sinal da cruz não produziu qualquer efeito mágico ou milagroso. As espadas e adagas dos sarracenos mostravam-se bem mais convincentes: rasgavam o sonho que a mobilizara até àquele lugar. Com as armas apontadas ao pescoço, o seu pensamento perdia-se, difuso, na história da sua vida. Deitara-se convicta de que era portadora de uma missão divina, acordara com a angústia da morte à frente dos olhos. Viu-se agarrada pelos dois desconhecidos e arrastada em direcção à porta e ao longo do corredor que a ligava ao acesso aos claustros. Todas as celas se encontravam já abertas. Nas que não se encontravam vazias, jaziam corpos esvaídos em sangue. Estavam mortos ou moribundos por se terem recusado a sair, terem lutado ou, sendo já velhos, liminarmente liquidados para não darem mais trabalho.
Depois de ter sido retirada pela porta principal do mosteiro, Ouroana foi levada para junto do ribeiro (referência ao actual ribeiro de Gamuz, que, na Idade Média, também se veio a designar Egamuz) que passava nas imediações e empurrada para o lugar onde se encontravam já alguns dos trémulos companheiros de infortúnio. O terror estampava-se nos rostos que sobreviveram à pilhagem e ao aço dos musculados soldados. Foram todos postos junto à margem, donde assistiram a um espectáculo hediondo. As chamas, ajudadas pelo calor que já se fazia sentir àquela hora do dia nos finais do mês de Julho do ano 997, consumiam, vorazes, o edifício onde a jovem noviça entregara a sua vida. Um grande estrondo eclodiu, capaz de estancar momentaneamente a algaraviada dos atacantes e de assustar, ainda mais, os aflitos clérigos. O sino da igreja acabava de ser derrubado, para gáudio de alguns exuberantes soldados que ergueram as espadas em direcção ao céu, enquanto invocavam Allâh.
Alguns momentos volvidos, curtos no ciclo do tempo, mas que pareceram intermináveis para todos aqueles desprotegidos colocados ao longo do pequeno curso de água, apareceu, montado num elegante cavalo cor de canela, vestido de finos brocados verdes e com uma bayda metálica a proteger a cabeça, um homem já de idade avançada e que parecia ser o chefe daquele exército. Ouroana olhou em redor e, ainda que por alto, contou cerca de três dezenas de cativos. Percebeu que faltariam outros tantos. Eram os mais jovens que ali se encontravam. Soerguendo a voz, um jovem cavaleiro árabe ordenou na sua língua materna, depois de descer da montada: todos de joelhos para receberem al-sayiid e al-malik al-karima do Califado de Córdova, o grande al-Mansur! O sangue da noviça gelou ao longo de cada uma das tensas veias e artérias. Conhecia melhor que qualquer outro cristão que ali se encontrava a fama do chefe das tropas árabes, aquele que os seguidores de Cristo consideravam o impiedoso e sanguinário Almançor. Assim se chamava por se manter invencível nas batalhas que liderara desde que assumira o comando político e militar das hostes oriundas do Califado de Córdova». In Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, Porto Editora, 2008, ISBN 978-972-004-166-1.

Cortesia de PEditora/JDACT