jdact
Palacioli,
Paço de Sousa, Anégia, ano 997
«Eis
que chegou a hora! Acordou abruptamente, muito antes de o sino anunciar a hora de
matinas, e levantou-se com aquela convicção bem cravada no seu coração. Ouroana
estava certa de que chegara finalmente o momento de cumprir a divina missão
para a qual fora chamada. Da sua minúscula cela, situada na parte traseira do
Mosteiro, podia ouvir perfeitamente os clamores de dor, de angústia e de espanto
dos homens e das mulheres com quem partilhava a vida, e ainda os gritos de guerra
entoados numa língua estranha naquela terra, mas que Ouroana tão bem conhecia, a
dos seguidores de Maomé. Também não demorou a afligir-se com o cheiro a fumo e
a fogo, bem como a tossir a fuligem que entrava pela fresta dos seus austeros aposentos.
Aquela imprevista luminosidade alaranjada tinha origem na igreja, onde evoluíam
labaredas que rapidamente consumiam a madeira, abalando as estruturas
graníticas do mosteiro dedicado a São Salvador, em Paço de Sousa, território de
Anégia, Condado Portucalense, no Reino de Leão. Não..., não há qualquer missão...
é o fim! Valei-nos, Senhor! Perdoa-me, Cristo, todos os pecados, pois chegou a minha
hora!, pensou, ao aperceber-se do inferno que a rodeava, enquanto vestia com urgência
o seu hábito. De repente, aquilo para que se havia preparado, a missão que lhe havia
sido anunciada com vista à sua salvação, parecia-lhe já uma visão sem sentido.
Afinal
não era Cristo aquele homem de branco!, murmurou angustiada. Os pensamentos turvavam-se
face ao ruído cada vez mais arrepiante que lhe chegava de todos os lados: os ensurdecedores
brados na língua dos árabes misturavam-se com os desesperados choros e lamentos
dos irmãos e irmãs do mosteiro e com os tropéis dos cavalos em redor do edifício.
A luz labarenta consumia-o, projectando sombras medonhas nas paredes. Como aquela
aurora era diferente das outras da sua vida! Mas outra coisa a afligia muito mais:
desvanecia-se a certeza que o seu coração detinha desde a Primavera do ano anterior
e com a qual acordara momentos antes. Não foi necessário muito esforço para que
dois homens magros, de tez morena, nariz adunco, barba comprida e vestidos de preto
abrissem a porta da sua cela, apenas segura por um débil ferrolho de madeira. O
sinal da cruz não produziu qualquer efeito mágico ou milagroso. As espadas e
adagas dos sarracenos mostravam-se bem mais convincentes: rasgavam o sonho que a
mobilizara até àquele lugar. Com as armas apontadas ao pescoço, o seu pensamento
perdia-se, difuso, na história da sua vida. Deitara-se convicta de que era portadora
de uma missão divina, acordara com a angústia da morte à frente dos olhos. Viu-se
agarrada pelos dois desconhecidos e arrastada em direcção à porta e ao longo do
corredor que a ligava ao acesso aos claustros. Todas as celas se encontravam já
abertas. Nas que não se encontravam vazias, jaziam corpos esvaídos em sangue. Estavam
mortos ou moribundos por se terem recusado a sair, terem lutado ou, sendo já
velhos, liminarmente liquidados para não darem mais trabalho.
Depois
de ter sido retirada pela porta principal do mosteiro, Ouroana foi levada para junto
do ribeiro (referência ao actual ribeiro de Gamuz, que, na Idade Média, também se
veio a designar Egamuz) que passava nas imediações e empurrada para o lugar
onde se encontravam já alguns dos trémulos companheiros de infortúnio. O terror
estampava-se nos rostos que sobreviveram à pilhagem e ao aço dos musculados
soldados. Foram todos postos junto à margem, donde assistiram a um espectáculo hediondo.
As chamas, ajudadas pelo calor que já se fazia sentir àquela hora do dia nos finais
do mês de Julho do ano 997, consumiam, vorazes, o edifício onde a jovem noviça entregara
a sua vida. Um grande estrondo eclodiu, capaz de estancar momentaneamente a algaraviada
dos atacantes e de assustar, ainda mais, os aflitos clérigos. O sino da igreja acabava
de ser derrubado, para gáudio de alguns exuberantes soldados que ergueram as espadas
em direcção ao céu, enquanto invocavam Allâh.
Alguns
momentos volvidos, curtos no ciclo do tempo, mas que pareceram intermináveis para
todos aqueles desprotegidos colocados ao longo do pequeno curso de água, apareceu,
montado num elegante cavalo cor de canela, vestido de finos brocados verdes e com
uma bayda metálica a proteger a cabeça, um homem já de idade avançada e que parecia
ser o chefe daquele exército. Ouroana olhou em redor e, ainda que por alto,
contou cerca de três dezenas de cativos. Percebeu que faltariam outros tantos.
Eram os mais jovens que ali se encontravam. Soerguendo a voz, um jovem cavaleiro
árabe ordenou na sua língua materna, depois de descer da montada: todos de joelhos
para receberem al-sayiid e al-malik al-karima do Califado de Córdova, o grande al-Mansur!
O sangue da noviça gelou ao longo de cada uma das tensas veias e artérias.
Conhecia melhor que qualquer outro cristão que ali se encontrava a fama do chefe
das tropas árabes, aquele que os seguidores de Cristo consideravam o impiedoso e
sanguinário Almançor. Assim se chamava por se manter invencível nas batalhas que
liderara desde que assumira o comando político e militar das hostes oriundas do
Califado de Córdova». In Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova,
Porto Editora, 2008, ISBN 978-972-004-166-1.
Cortesia de
PEditora/JDACT