quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A Escrava de Córdova. Alberto S. Santos. «Almançor fez avançar o seu alazão até junto do primeiro dos monges ajoelhados ao longo do ribeiro e fez-se passar lentamente em frente de cada um deles. Parava junto de alguns cativos»

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Palacioli, Paço de Sousa, Anégia, ano 997
«(…) De facto, Muhammad Abiamir, o seu verdadeiro nome, ocupava, desde 978, o cargo de hajib, o primeiro-ministro dos Omíadas. Havia conseguido a sua primeira importante vitória como comandante militar em 977, quando invadiu com sucesso o Reino de Leão e, a partir de então, passou a aterrorizar todos os lugares por onde passava com as suas permanentes aceifas estiais. Saqueou, matou, destruiu, pilhou tudo o que encontrara pela frente, com especial gosto pela humilhação e profanação dos santuários da cristandade. Concentrara em si todos os poderes, eclipsando o próprio jovem Califa Hisham II. Todavia, naquele canto mais ocidental da Península, acreditava-se que Almançor não pretendia ali voltar, por estar mais concentrado na zona central de Leão e em Castela. Estava visto que assim não era! Ouroana estranhou a falta de reacção dos monges às ordens do ginete. Só depois compreendeu que apenas ela entendia a língua dos árabes. Para não chamar a atenção sobre si, decidiu, também ela, não acatar de imediato as instruções. Mas a ordem ecoou, de seguida, em perfeita língua romanço, a falada nas terras que acreditavam que Jesus era o verdadeiro filho de Deus, oriunda daquele que detinha a missão de intérprete do exército islâmico. A reacção já foi diferente: a noviça entreviu os rostos aflitos dos seus, ao perceberem quem tinham pela frente. Todos cumpriram com prontidão.
Almançor fez avançar o seu alazão até junto do primeiro dos monges ajoelhados ao longo do ribeiro e fez-se passar lentamente em frente de cada um deles. Parava junto de alguns cativos, especialmente mulheres. Com a espada, fazia-os levantar a cabeça, deixando comentários para o jovem ginete que o seguia a pé. A ponta da espada esfriou o queixo de Ouroana. Tolhida, ergueu a cabeça e viu um negro fulminante afogar o azul celeste que os seus olhos alumiavam no momento. Os de Almançor cresceram de espanto, ao mesmo tempo que um misterioso sorriso se lhe desenhava no rosto. Agarrou os pêlos da sua barba bem aparada com a mão esquerda e, com a direita, levantou a bayda. Calmamente, alisou os seus longos cabelos brancos, voltando a tapar a cabeça, e, com o dedo indicador direito, coçou uma vincada cicatriz que exibia na face. O frio metal desceu ligeiramente e acariciou demoradamente os hirtos seios da jovem indefesa que se escondiam por dentro do hábito que fora preto e branco, mas que, então, mais parecia a vestimenta de um mendigo. A fuligem, as cinzas e a poeira desfiguraram-no completamente. A mão amarelenta do comandante árabe fez subir a espada, roçando ao de leve a orelha direita de Ouroana, até chegar a um ponto acima da sua testa. Baixou-a depois ligeiramente, fazendo-a penetrar por debaixo do véu preto que completava o seu hábito monacal. Rodou o metal até ficar com a lâmina de forma perpendicular ao topo da cabeça e, com um movimento brusco e forte, rasgou-o, permitindo que se soltasse uma longa e encantadora cabeleira loura.
Hmmm... Que belos cabelos! Lembram-me algo ou alguém... Parecem um ondulante campo de trigo do al-Andalus!, gracejou Almançor, deixando-se enlevar pelo agradável efeito que produzia a visão daquela mulher de pele alva e brilhante. Os olhos do árabe abriram-se ainda mais e os seus lábios desceram da posição de sorriso inicial até se tornarem arredondados. Que o Todo-Misericordioso me perdoe!... Mas é muita beleza junta numa infiel! Será certamente uma escrava bem disputada nos mercados de Córdova para o harém de um piedoso e rico muçulmano, asseverou Almançor, ainda intrigado com a fugaz ideia de ter visto algures aquele rosto. Atrás de si, um soldado sorriu, sardónico, enquanto manifestava um concordante aceno com a cabeça e olhava a noviça com mal contida lascívia. As faces de Ouroana tonalizaram a raiva que lhe ardia por dentro. Não evitou uma sequência de pestanejos, nem logrou conter o descontrolo das suas batidas cardíacas. Voltou-lhe ao pensamento aquele sonho que lhe definira a sua missão. E, enquanto via Almançor e o seu sequaz prosseguirem a inspecção aos demais ajoelhados, atravessava pela sua mente um novo turbilhão de ideias e de imagens sem um sentido definido: ora se via a morrer à espada de um árabe e, esvaída em sangue, atirada ao ribeiro, ora fugia com as tropas islamitas no seu encalço, ora salvava o mundo do infiel inimigo, à frente de um exército cristão». In Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, Porto Editora, 2008, ISBN 978-972-004-166-1.

Cortesia de PEditora/JDACT