sábado, 31 de dezembro de 2016

No 31. O Diabo é um Homem Bom. Ana Miranda. «O prazer, essa felicidade imediata que consome o tempo, o dinheiro e a alma, só cria dependentes. E o que não estamos nós dispostos a fazer pelo prazer!»

jdact e  wikipedia

«(…) Ao lado de Jean, a semente germinou, secreta como seiva, perante as extremas injustiças maquinadas pelas elites mundiais e diariamente relatadas. No fundo, a minha história é fruto de um puzzle cujas peças são acontecimentos aleatórios dos dias vividos. Não, não venho aqui contar-vos os factos, palavra que perdeu a virgindade primária. Venho partilhar a minha percepção do mundo, dos acasos que o regram ou desregram e a forma como tudo isso fez de mim aquilo que fui, e sobretudo aquilo que sou, neste preciso instante em que escrevo, uma velha, um ser humano em fim de vida, num mundo em permanente estado de urgência. Tudo começaria com este correio electrónico:
Querida amiga, deixa-me falar-te do meu desespero. A terra está cheia de demónios, mas que são, afinal, os mesmos que povoam o nosso próprio inferno. Sempre detestei a mer… da violência e a mer… da guerra. Desculpa a minha fúria. Estamos todos metidos no mesmo atoleiro. Este mundo é a nossa pocilga, Laura. Se a guerra existe é porque há quem a sirva. Os soldados servem os generais que servem os governos que servem os ditadores que se servem de todos nós. A guerra é o trabalho dos homens-soldados. São eles a engrenagem da máquina infernal. É assim que eles governam as suas vidas, alimentam as suas famílias. Em troca de dinheiro, esses pobres tipos servem os senhores da guerra que arrotam de proveito e ejaculam de gozo o bem que lhes sabe todo o mal dos outros. É claro que não me iludo. Mesmo se não houvesse homens-soldados, nem homens-generais haveria sempre guerra. Mas, o que não posso aceitar é que haja Estados a organizar matanças, a escravizar pessoas e a fomentar ódios. Chego a acreditar que os que detêm o poder estão pactuados com o maléfico. Achas que será possível, um dia, alterar este estado de coisas? A fúria e o desespero não são bons aliados, eu sei. Mas gostava de compreender o que faz de nós carrascos uns dos outros. O mal, Laura, conjuga-se na primeira pessoa e dissimula-se no colectivo. No fundo, somos todos malditos. O mal como estratégia de poder é um trágico absurdo, é o que te digo. Não tenhas dúvidas, este é o tempo do maligno, a hora do caos, porque o caminho foi assim preparado por cada um de nós. O inferno é aqui. O diabo existe, Laura, sou eu, és tu, é a tua irmã ou o teu vizinho. Combatê-lo é combater a vida e exterminar tudo ou apenas uma parte, não sei. Extingui-lo exige uma solução final, disso estou certo. É preciso um homem novo, uma raça superior se queremos evitar a nossa perda. Poder-se-á combater o mal pelo mal, afinal, é a dose que faz o veneno. Haverá para isso alguma fórmula? Fico com as minhas cogitações. Espero ansiosamente pelo encontro de amanhã, o momento em que te conhecerei, enfim. Sinto que temos muitas coisas para partilhar, querida Laura. Sempre teu, Jean.
O encontro fora previsto para uma hora tardia. Meia-noite. O momento em que um dia termina e outro começa.Se o mundo teve uma hora precisa de concepção foi decerto essa. Escolhi o local ao acaso, ou talvez não. Seria melhor um sítio com algumas pessoas em redor que um antro deserto ou um bar perdido num bairro sujo de Paris. Na verdade, as decisões tomadas nesses últimos tempos não obedeciam a nenhuma regra. O passado surgia-me com profunda nostalgia e uma nítida sensação de perda. Perda de inocência, perda de coisas e de pessoas que amei, perda de tempo e de vida. Com o andar dos anos, as pessoas fundem-se com as coisas e deixamos de saber se amamos as pessoas pelas coisas ou o inverso. Não há dúvida que podemos amar as coisas e as pessoas em simultâneo. Tanto faz. O mundo tornou-se demasiado complexo e incompreensível à força de querer compreendê-lo.
Tudo querer saber é pura intoxicação. O excesso de informação deforma e pode induzir a um estado de desânimo altamente explosivo ou vegetativo depende, talvez, da fase da Lua. No dia em que decidi responder ao anúncio de Jean, morria de tédio. O tédio das grandes cidades, que tem o poder de reduzir qualquer um a uma existência bruta e insignificante, como um banco de jardim ou um automóvel estacionado no parque do Carrefour. Nem a última filha da putice engendrada contra mim, pelo maralhal da empresa, que outrora me teria atirado para o divã do psiquiatra mais próximo, me estimulava os neurónios. Nada. Nem ódio, nem cólera, nem desejo, nem nada. Devo dizer-vos que faço parte de uma geração que tudo conquista e nada tem.
O prazer, essa felicidade imediata que consome o tempo, o dinheiro e a alma, só cria dependentes. E o que não estamos nós dispostos a fazer pelo prazer! Sou de um tempo em que a felicidade é uma meta, um objectivo de vida, sem no entanto saber que aspecto tem, ou como e onde a encontrar». ». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.

Cortesia de EChiado/JDACT