quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Que bela intuição! Agora, importa decidir o que fazer: paramos por aqui ou continuamos os trabalhos e abrimos o túmulo? Essa é uma boa questão…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sem que alguém o tivesse percebido, o peregrino e o cão entraram na catedral e fundiram-se numa coluna, duas sombras fantasmagóricas mais que as luzes trémulas compunham para habitar a noite do templo. Dobrado no buraco, Larramendi via o sujo pedreiro com a boca e o nariz tapados pela mão, enquanto se dirigia como podia, de olhos esbugalhados e húmidos, para a saída. Já perto do mestre de obras, fez sinal para que o deixasse passar. Entregou o archote e ergueu-se, lívido como um cadáver, para voltar ao solo da catedral, ainda a tossir. Larramendi ajudou-o a sair da cavidade, amparou-o com os braços e sentou-o num banco. Em tantos anos de trabalho conjunto, nunca vira Nartallo naquele estado. Lá fora a chuva não parava, como era hábito nos invernos galegos. Mas os emocionados habitantes da catedral compostelana não reparavam nas gordas bátegas que se abatiam sobre o telhado e as janelas da catedral. Um semicírculo de homens, curvados sobre o trabalhador, aguardava que este se recompusesse. O que aconteceu, Nartallo?! Eu vi… Eu vi uma caixa aberta no sepulcro… Havia algo lá dentro, pareciam ossos, explicava, a custo. Mas exalava tanto fedor que quase morri…
Payá respirou fundo e os olhos brilharam. Os pensamentos corriam vertiginosamente e um sorriso vitorioso no rosto inteiro sublimava-lhe o gáudio interior: aquele dia 28 de Janeiro de 1879 haveria de ficar gravado na história da cristandade com vigorosas e bem desenhadas letras de ouro! Eu sabia… Eu sabia… Graças a Deus…, murmurava, enquanto Nartallo recuperava da náusea. Enlaçado nos pensamentos, o cardeal circulava nervosamente de um lado para o outro, com as mãos atrás das costas, sobre o lajeado do templo. Agora só precisava de colocar o plano em acção. Estava tudo previsto, caso conseguisse concretizar a pia missão: provar cientificamente que o sacro corpo que aquela catedral guardara durante tantos séculos era, sem margem para dúvidas, Santiago Maior, o filho do Zebedeu. Quero ver a cara desses incréus! Dizem que não acreditam que aqui repousam os ossos do nosso santo apóstolo?!, resmoneou, esfregando as mãos, enquanto congeminava o que fazer a seguir. Labin, vai chamar dom José Canosa!, pediu, com uma piscadela de olho.
Acreditando na tradição de que o túmulo se encontrava debaixo do deambulatório da catedral compostelana, havia preparado a estratégia ao pormenor: os peritos que analisariam os achados; os historiadores que emitiriam o parecer; e, claro, as festas que haveria de organizar por tão extraordinárias notícias. Fora grande a desilusão quando, nos primeiros dias, os trabalhadores apenas descobriram uma cripta rectangular com dois compartimentos: um edifício sepulcral romano com unguentários, lacrimatórios, um anel, colares e adornos femininos, uma pedra de quartzo cor-de-rosa, um cavalinho de barro, brinquedo de uma criança romana, moedas e várias peças de uso doméstico de vidro azulado. Mas do túmulo que buscava…, nada! Agora, num ápice, a roda da fortuna girara para o fazer feliz! Quero ver a cara do Canosa quando vir isto! Oh, se quero!, dom Miguel rodopiava no próprio murmúrio. E de alguns membros do cabido! Sempre a desconfiarem das ideias do cardeal! Pela imaginação de Miguel Payá corria a imagem dos peregrinos a voltarem e a abonarem os exauridos cofres do arcebispado. A culpa da carestia devia-se à abolição da renda que os camponeses de Espanha e do norte de Portugal pagavam à clerezia compostelana, o Voto de Santiago, instituído por Ramiro I, na sequência da mítica batalha de Clavijo, a 23 de Maio de 844, quando Santiago aparecera, providencial, em carne e osso, para mudar a sorte da peleja contra os sarracenos. Por muitos e muitos séculos, as primícias das colheitas e das vindimas passaram a pertencer à igreja de Compostela, nos territórios cristãos defendidos e nos que a seguir se tomaram aos mouros. Naqueles fervorosos tempos perdidos na bruma da História, Ramiro achara que era a mais que merecida quota-parte devida ao apóstolo, nos despojos de guerra, pela forma como, de espada em punho, este o ajudara a escorraçar os mouros.
Discretamente, o delgado peregrino aproximara-se e sentara-se num banco, a poucos metros dos acontecimentos. Olhava com atenção para os homens felizes e para o pedreiro convalescente. Aconchegou-se num manto seco que tirara de um saco para se proteger do frio. O seu coração também se alegrava, mas ninguém ali sabia da razão. Perante o magnífico altar da catedral, de onde emanava um leve odor a bafio e a pó, misturado com velas e incensos queimados, recordava episódios antigos e esquecidos, que marcaram um tempo extraordinário no ocidente, no distante século IV. Puxou Diógenes, o obediente cachorro, para si e fez-lhe sinal para que se mantivesse aninhado ao seu lado. Como vos lembrastes de escavar aqui, López? Senhor cardeal, de cada vez que cantávamos sobre este local a antífona Corpora Sanctorum in pace sepulta sunt, olhava para a estrela no mosaico e para a abóbada, onde estão pintados os atributos do apóstolo, incluindo a arca e a estrela. Alguma coisa isso quereria dizer… Um sinal dos nossos antepassados… Que bela intuição, meu bom amigo! Agora, importa decidir o que fazer: paramos por aqui ou continuamos os trabalhos e abrimos o túmulo? Essa é uma boa questão, López Ferreiro… Deixa cá ver… O cardeal, com o peso dos seus 67 anos, apertava as bochechas que lhe pendiam da cara larga, enquanto pensava. O cheiro intenso do fumo das velas e archotes, misturado com o odor a petróleo dos candeeiros, não o incomodava, apenas a pouca luz que debitavam». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT