segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Stonehenge. Bernard Cornwell. «O forasteiro atravessara a vala e subira a barreira, mas Lengar dirigiu-se à antiga entrada sul, onde uma estreita vereda levava ao frondoso interior»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O cavalo abandonado, assustado pela trovoada e pelo gado, trotou para ocidente da floresta. Lengar esperou até que o cavalo desaparecesse por entre as árvores, levantou-se da vala e correu em direcção às aveleiras, para onde o forasteiro se dirigira. Saban foi atrás, entrando onde nunca estivera nos seus doze anos de vida. No Velho Templo. Uma vez, há muitos anos, há tantos que ninguém vivo se lembrava desses tempos antigos, o Velho Templo fora o maior santuário da zona central. Nesses tempos, quando os homens vinham de longe para dançar no recinto do templo, a barreira de greda que o cercava era tão branca que parecia cintilar à luz da Lua. De um lado a outro do anel cintilante iam cem passos e, nos tempos antigos esse espaço sagrado fora percorrido pelos pés dos dançarinos que rodeavam a casa dos mortos formada por três anéis de troncos cortados de carvalho. Os troncos nus e macios tinham sido oleados com gordura animal e enfeitados com ramos de azevinho e hera.
Agora a barreira estava coberta de relva sufocada por ervas daninhas. Pequenas aveleiras haviam crescido na vala e outras invadido o enorme espaço dentro da barreira circular, de modo que, à distância, o templo parecia um bosque de pequenos arbustos. Os pássaros faziam os ninhos onde outrora os homens dançaram. Por cima do emaranhado de aveleiras, via-se ainda o poste de carvalho da casa dos mortos, mas este estava agora inclinado e a madeira, outrora lisa, apresentava-se picada, negra e grossa devido aos fungos. O templo fora abandonado, todavia os deuses não esquecem os seus santuários. Por vezes, em dias calmos quando a neblina se estende sobre as pastagens ou a lua cheia se mantém imóvel sobre o círculo de greda, as folhas das aveleiras estremecem como se o vento passasse por elas. Os dançarinos partiram, mas o poder ficou. E agora o Fronteiriço entrara no templo. Os deuses gritavam. As sombras das nuvens engoliam a pastagem, enquanto Lengar e Saban corriam em direcção ao Velho Templo. Saban tinha frio e estava assustado. Lengar também estava receoso, mas o Povo da Fronteira era famoso pelas suas riquezas e a ganância de Lengar era superior ao medo de entrar no templo. O forasteiro atravessara a vala e subira a barreira, mas Lengar dirigiu-se à antiga entrada sul, onde uma estreita vereda levava ao frondoso interior. Uma vez atravessada a vereda, Lengar pôs-se de gatas e rastejou por entre as aveleiras. Saban seguiu-o com relutância, sem querer ficar sozinho na pastagem quando estourasse a ira do deus da tempestade.
Para surpresa de Lengar, o Velho Templo não estava completamente coberto de arbustos, pois havia um espaço limpo no local onde se situara a casa dos mortos. Alguém da tribo deveria ainda visitar o Velho Templo, porque as ervas daninhas foram arrancadas, a relva cortada com uma faca e apenas uma caveira de boi se encontrava aí, no local onde se sentava agora o forasteiro, encostado à única coluna que restava do templo. O rosto do homem estava pálido e tinha os olhos fechados, mas o seu peito subia e descia com a respiração difícil. Trazia uma fila de pedras negras na parte interior do pulso, apertadas por atilhos de couro. Havia sangue nas suas calças de lã. O homem pousara o arco e a aljava das flechas junto da caveira do boi e agarrava agora um saco de couro junto ao ventre ferido. Havia três dias que fora apanhado numa emboscada, dentro da floresta. Não vira quem o atacara, apenas sentira uma dor atroz, resultante da lança que lhe atiraram, depois picara o cavalo e deixara que este o levasse para fora de perigo. Vou buscar o pai murmurou Saban.
Não vais sussurrou Lengar, mas o ferido devia tê-los ouvido, pois abriu os olhos e fez uma careta, inclinando-se para diante, de modo a pegar no arco. No entanto, o forasteiro estava mais lento devido à dor e Lengar foi muito mais rápido. Largou o arco saiu do esconderijo e correu pela casa dos mortos apanhando o arco do forasteiro com uma mão e a aljava com a outra. Com a pressa espalhou as flechas de modo que apenas restava uma na bolsa de couro. O rolar dos trovões soou a ocidente. Saban estremeceu, temendo que o som aumentasse, enchendo o ar com a raiva do deus, mas o trovão afastou-se, deixando o céu mortalmente calmo. Sannas disse o forasteiro, acrescentando depois palavras numa língua que nem Lengar, nem Saban falavam. Sannas? perguntou Lengar. Sannas repetiu o homem ansioso. Sannas era a grande feiticeira de Cathallo, famosa em toda a terra. Saban calculou que o forasteiro quisesse ser tratado por ela.
Lengar sorriu. Sannas não pertence ao nosso povo afirmou. Sannas vive a norte. O forasteiro não compreendeu o que Lengar disse. Erek pronunciou e Saban, ainda escondido nos arbustos, perguntou a si próprio se seria o seu nome, ou talvez o nome do seu deus. Erek disse o ferido com maior firmeza, mas a palavra nada significava para Lengar, que retirara uma flecha da aljava do forasteiro e a enfiava no arco. Este era feito de tiras de madeira e chifre, coladas e ligadas com tendões; o povo a que Lengar pertencia nunca usara uma arma assim. Preferiam um arco mais longo, feito de teixo, de modo que sentia curiosidade por aquela estranha arma. Esticou a corda, experimentando-lhe a força. Erek! gritou muito alto o forasteiro. És do Povo da Fronteira afirmou Lengar. Não tens nada a fazer aqui. Esticou de novo o arco, surpreendido pela tensão de uma arma tão curta. Traz-me um curandeiro. Traz-me Sannas disse o forasteiro na sua própria língua. Se Sannas estivesse aqui afirmou Lengar, reconhecendo apenas o nome matava-a primeiro. Cuspiu. Isto é o que eu penso de Sannas. É uma vaca enrugada, uma semente do mal, estrume de sapo feito carne. Cuspiu de novo». In Bernard Cornwell, Stonehenge, 1999, Editora HarperCollins, 2008, Editora Record, tradutor Alves Calado, ISBN 978-850-107-985-5.

Cortesia de ERecord/JDACT