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«Joscelin
ficou com ar pensativo e tentou perceber as palavras de Fitz-Warin. Não tinha
dúvidas de que Ralf, Richard e Warin eram rapazes simpáticos, fáceis de treinar.
No entanto, um rapaz que precisava de abrir as asas sugeria alguém que
representava um desafio. É uma grande responsabilidade criar o herdeiro do nosso
amigo, disse Joscelin. Confio em ti. E não confias em ti? FitzWarin resmungou:
eu fui enviado para fora para ser treinado porque era um dos filhos mais novos mas
foi isso que fez de mim aquilo que hoje sou... e o destino também teve um papel
importante, porque o meu irmão mais velho morreu e tornei-me no herdeiro. Brunin
é como eu. Terá mais oportunidades de desabrochar numa casa diferente, e gostaria
que fosse na tua. Joscelin franziu a testa. Já discutiste esse assunto com a tua
mulher? Eve fará aquilo que eu disser e, quanto à minha mãe, eu trato do assunto,
respondeu bruscamente FitzWarin Joscelin pensou na sua confortável situação
doméstica e sabia que, apesar da deslumbrante beleza de Eve FitzWarin, não trocaria
nem por um minuto que fosse com o seu amigo.Vou comprar um novo pónei para o Brunin,
continuou FitzWarin num tom mais leve. O Mark anda neste preciso momento a percorrer
a feira com ele mas vamo-nos encontrar na feira dos cavalos ao sexto toque. Se quiseres
ver o rapaz, junta-te a nós. Para lhe ver os dentes como se fosse um poldro para
venda?
FitzWarin
ignorou o sarcasmo de Joscelin. Bem, sim, se assim o quiseres... Realmente não se
compra um cavalo sem primeiro o observarmos com atenção. Joscelin não respondeu
porque um jovem, com ar preocupado, aproximou-se apressadamente deles vindo da zona
dos petiscos. Vestia uma túnica acolchoada de homem de armas e tinha a mão esquerda
pousada na bainha de uma longa faca de caça. Mark? A expressão de FitzWarin azedou.
Onde está Brunin? O jovem inclinou a cabeça em sinal de deferência e pesar. Não
sei, senhor. O olhar de FitzWarin podia cortar aço. Não sabes? O sargento humedeceu
os lábios: fomos separados pela multidão, senhor. Vou a caminho da feira dos
cavalos para ver se ele está lá. Ele sabia que esse era o nosso ponto de encontro
e pensei que... Por amor de Deus, como é que se separaram? O grito de FitzWarin
assustou o sargento. Eu... Num minuto ele estava comigo, a seguir desapareceu. Ele
estava onde?, perguntou Joscelin. Diz-me precisamente onde o perdeste. Em que tenda?
O sargento esquivou o olhar. Numa das tendas de comes-e-bebes, senhor. Os olhos
de FitzWarin relampejaram. Já percebi que estavas a beber e a encher a pança quando
devias estar a tomar conta do rapaz. Só me distraí por um momento, juro. Basta um
momento. FitzWarin fechou o punho. Agora não tenho tempo para isto. Trato de ti
depois. Temos de encontrar o meu filho. Tenho a certeza que o teu sargento tem
razão e o miúdo vai ter à feira dos cavalos. Suponho que ele tem bom senso,
não? FitzWarin olhou furioso para Mark. Sim, tem bom senso se assim o quiser...
mais do que este cabeça de burro.
Os homens
começaram a atravessar a feira. FitzWarin ordenou a Mark que fosse buscar os outros
cavaleiros e sargentos para que ajudassem na busca. Mas não digas nada às mulheres,
ordenou. A última coisa que preciso é pânico no galinheiro. Fitzwarin e Joscelin
foram directamente para a feira de cavalos mas, apesar de ali estarem muitos rapazes
a segurarem cavalos e a ajudarem os cavalariços, não havia sinais daquele que procuravam.
Com a pequena mão protegida por um punho calejado, um filho passou pelos homens
acompanhado pelo pai. Pararam lado a lado para inspecionar um pónei mesclado e bem
alimentado. FitzWarin olhou para o rosto sério da criança que olhava para o
pai, depois para o sorriso indulgente deste último e soube que Deus o estava a castigar.
Se aconteceu alguma coisa a Brunin, arranco as tripas do sargento para enfeitar
calças, murmurou através de dentes cerrados. O instinto inicial de Joscelin era
murmurar a frase chavão de que o rapaz apareceria são e salvo, mas conteve-se. Não
havia dúvida de que se uma das suas filhas desaparecesse no meio de uma multidão,
ele ficaria destroçado. Prudentemente, calou-se e começou a procurar o rapaz. Mark
e os outros soldados procuraram ao longo das margens do Severn onde as barcaças
dos comerciantes se apinhavam nos ancoradouros mas não havia sinal de Brunin e ninguém
o tinha visto. O rio, embora parecesse inocente, era traiçoeiro e fundo e rapidamente
engoliria uma criança que nele caísse. Também investigaram azenhas, riachos e lagos,
mas sem resultados. Fitzwarin percorreu o circuito da feira com Joscelin sem qualquer
efeito e a sua agitação tinha aumentado consideravelmente quando foram abordados
por um jovem monge. Meus senhores, ouvi dizer que procuram uma criança perdida?
Os olhos de FitzWarin brilharam. Deus seja louvado, encontraram-no? Sim, meu senhor.
O irmão Anselmo está com ele na casa da entrada do mosteiro. O monge apontou para
trás de si, indicando um edifício de pedra junto ao portão principal. FitzWarin
apressou o passo, colocando a mão sobre a bainha para a manter quieta. Joscelin
apressou o passo atrás dele. Se ele procurou os monges para o ajudarem, isso também
demonstra bom senso, disse Joscelin.
FitzWarin
resmungou: bom senso teria sido ficar junto do meu sargento, disse ele. Têm os dois
culpa no cartório. Sentado num banco do lado de fora da casa, estava um monge volumoso
de meia-idade que confortava uma criança de ar abatido. Lágrimas escorriam ao longo
da suave pele morena do rapaz e os seus olhos escuros estavam enevoados e carregados.
Uma das faces tinha umas marcas que pareciam dedadas ensanguentadas e tinham-lhe
aplicado uma pomada amarela sobre uma ferida que tinha no pescoço. Nas calças podia-se
ver uma mancha reveladora. FitzWarin deteve-se e abriu muito os olhos. Raios me
partam, meu Deus, Brunin? O monge retirou o braço que tinha à volta dos ombros do
rapaz e levantou-se. Se estava perturbado pela blasfémia na casa de Deus, disfarçou
bem. É seu filho, senhor? É meu filho, respondeu rapidamente FitzWarin. O que é
que lhe aconteceu? Dirigindo-se ao banco, parou junto a Brunin e virou-lhe o queixo
para a luz. Quem é que te fez isto? O rapaz tinha uma expressão vazia. FltzWarin
conhecia aquela expressão. A dor que Brunin sentia tinha sido sugada para o seu
interior onde se alimentava do silêncio, para depois se alimentar dele. Uns rapazes
mais velhos estavam a troçar dele e as coisas estavam a ficar feias, disse o monge.
Intervim e trouxe-o para casa. Quando ouvi um dos meus irmãos dizer que havia
uma busca, pedi ao irmão Simon para que vos trouxesse até aqui. Gesticulou. Está
muito abalado mas parece que não houve estragos permanentes.
FitzWarin
virou-se para Brunin: reconhecerias os jovens se os visses outra vez?, perguntou,
e cerrou os dentes quando viu os olhos do filho encherem-se de pavor. Conseguias?
Percebeu que estava a erguer a voz, mas não conseguia evitar. Sim, senhor, sussurrou
Brunin. FitzWarin colocou-o de pé abruptamente. Então vamos encontrá-los e vejamos
o que têm para dizer quando provarem a minha espada. Senhor, a violência só traz
mais violência, interveio o monge. Seguramente que já todos nós vimos o suficiente
ao longo das nossas vidas para não querer ver mais. Guarde as suas homilias para
a missa, rosnou FitzWarin. Já engoli homilias suficientes no passado para
durarem toda uma vida! Voltando abruptamente as costas ao monge, pressionou o filho
que tremia sob as suas mãos. Como é que eles eram?» In Elizabeth Chadwick, Sombras e
Fortalezas, 2004, Edições Chá das Cinco, 2009, ISBN 978-989-803-259-1.
Cortesia de
ECdasCinco/JDACT