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Sucessos durante a viagem. Chegada a
Lisboa
«(…) Logo nos primeiros dias de
viagem, tivemos os ventos contrários e foi com muita dificuldade que se dobrou
o cabo de Santo Agostinho, levando mais de quinze dias a fazer o que, com tempo
normal, se teria feito em três ou quatro. Apesar de não nos encontrarmos tão
bem alimentados como durante a viagem de Goa, comendo nesta apenas cassave e carne
salgada ou fumada e só bebendo água, os casos de doença foram poucos e de morte
apenas três ou quatro. Não ponho por isso em dúvida que o uso frequente do
açúcar, que cada um de nós dissolvia na água, a cassave e a abundância de
frutas de compota com que nos havíamos abastecido no Brasil, contribuíram em
muito para nos defender da cruel doença chamada escorbuto, porque nos alimentou
o calor natural, cujo enfraquecimento, observando bem, é a causa única de tal
doença. A tripulação da nossa nau havia ficado muito fatigada da viagem de Goa
para o Brasil e apesar de todos os cuidados que se haviam tomado para impedir
as doenças, poucos tiveram a felicidade de não sentirem alguns sintomas,
encontrando-se a maior parte dos tripulantes num estado deplorável ao chegarem
a terra. Pelo caminho faleceram 30 homens. Na viagem do Brasil para Portugal
gozou-se de uma melhor saúde, mas as frequentes tempestades que tivemos de
suportar e nos puseram à beira da morte impediram-nos de gozar em paz o bem da
saúde, e ainda a infelicidade de assistirmos à morte de dois homens que caíram
ao mar, sem ter havido possibilidade de os socorrer. No trajecto avistámos a
ilha Fernando de Noronha; é pequena e tem o nome daquele que a descobriu. É
inabitável embora se diga que noutro tempo se ia ali fazer aguada.
Acrescenta-se, porém, que se tornou inabitável depois de os ingleses ali terem
deixado, de propósito ou por acaso, cães de fila que se foram multiplicando e
tornaram tão ferozes e selvagens que ali impedem o desembarque.
Continuámos a nossa rota até às
alturas das ilhas dos Açores, onde os Portugueses se haviam estabelecido há
muito tempo e donde retiram a maior parte do trigo que se consome em Portugal.
A ilha mais importante deste arquipélago é a Terceira, onde o rei Afonso
residiu numa espécie de exílio, até que Pedro, seu irmão, no receio de que os
Espanhóis ali o fossem raptar, o transferiu de lá para Lisboa e daí para o Paço
de Sintra, onde ficou encarcerado até à morte.
Ainda se pensou em fundear na
Terceira, mas o vento afastou-nos e passámos das ilhas de Santa Maria e de São
Miguel, às quais tentámos abordar, mas as tempestades não o permitiram. Acrescentarei
somente que depois de uma infinidade de fadigas comuns e de desgostos
particulares chegámos a Lisboa a dezasseis de Dezembro, onze meses depois da partida
de Goa.
Breve descrição da cidade de Lisboa
Nas proximidades do porto de Lisboa
existe uma montanha chamada a Roca, que já de longe se avista. A medida que nos
vamos aproximando do dito porto, vão-se encontrando bancos de areia e rochedos
à flor da água, o que torna a entrada difícil e perigosa aos navios cujos
capitães não queiram tomar os pilotos, que, aliás, por ali abundam, oferecendo
os seus serviços a todos os navios que se aproximam da barra. São frequentes os
capitães ousados que, correndo o evidente risco de naufragarem, recusam os
serviços destes pilotos, pagando com o naufrágio dos seus navios a temeridade
que cometeram. Estes exemplos funestos não impedem que haja sempre oficiais
desejosos de exibirem habilidade e experiência, que repitam a façanha,
arriscando os seus navios ao recusarem os auxílios que lhes podiam dar
segurança.
Logo que os navios se aproximam do
forte, a que os portugueses chamam Torre do Bugio, o perigo desapareceu. Esta
torre está construída sobre estacaria, em pleno mar e possui uma importante
guarnição e artilharia pesada. Em frente, já em terra firme, avista-se um outro
forte, chamado de São Julião, por corrupção de São João. Este forte tem melhor
guarnição e está mais bem artilhado que o do Bugio. Nenhuma embarcação pode ali
passar sem se colocar ao alcance dos canhões destas duas fortalezas da barra do
Tejo. Na outra margem do rio, defronte da Torre de Belém, existe um grande edifício
destinado à quarentena de todas as pessoas que entrem neste porto provenientes
de lugares onde havia a peste. De Belém até à cidade encontra-se um grande
número de lindíssimas casas de campo com agradáveis jardins. Os navios fundeiam
defronte do Palácio Real, de cujas janelas se podem ver todos os navios ali
reunidos. O Palácio Real, a que os Portugueses chamam O Paço, é um edifício mais
ou menos do tamanho do Palácio do Luxemburgo, mas não tão belo; não tem
jardins, mas em compensação situa-se na margem do Tejo, dando uma das faces
para uma das maiores e mais belas praças que existem, chamada Terreiro do Paço.
É nesta praça que se realizam as touradas e os torneios, espectáculos a que o
rei e a corte podem assistir das janelas do Paço. É também nesta mesma praça
que se realizam os autos-de-fé, em Lisboa; para isso a praça é coberta e
arma-se uma espécie de igreja, colocando-se um trono a cada lado do altar, um
ocupado pelo inquisidor-mor e o seu conselho e o outro pelo rei, príncipes, os
grandes da corte e os supremos magistrados. Para a realização deste acto é
preferido o Terreiro do Paço a uma qualquer igreja por causa da amplidão, pois só
ali caberá a grande multidão de espectadores. Muito próximo da Praça Real, e
também à beira do Tejo, existe uma outra grande praça onde se realiza o maior
mercado de toda a cidade; ali se vendem mercadorias de toda a espécie e embora
existam muitos outros mercados de menor importância, é ali que os criados das
grandes casas se vão fornecer». In José Brandão, Este é o Reino de Portugal,
Saída de Emergência,2013, ISBN 978-989-637-457-0
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