terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Carícias da Noite. Laurell Hamilton. «Só as orelhas pontiagudas denunciavam que ele era mestiço, como eu própria, como Nicca. Podia esconder as orelhas com todo aquele cabelo, mas quase nunca o fazia»

jdact

«(…) Na escuridão semi-iluminada pelo luar não conseguia ver-lhe claramente as costas, nem mesmo os ombros. Grande parte dele estava perdida sob o lençol. Era nas suas costas que residia a maior surpresa. O pai dele havia sido uma criatura com asas de borboleta não pertencera aos Sidhe, mas não deixara de ser um ser feérico. A genética havia-lhe delineado asas nas costas, como se fosse uma tatuagem gigante, à excepção de serem mais vividas, mais vivas do que qualquer tinta o poderia fazer. Uma explosão de cores começava na parte superior dos seus ombros, percorria-lhe as costas, passava pelas nádegas, fluía sobre as ancas e ia tocar-lhe na parte de trás dos joelhos: castanho muito claro, castanhos-amarelados, círculos de azul cor-de-rosa e preto como ocelos nas asas de uma traça. Estava deitado na escuridão de tal modo esvaziada de qualquer cor que ele e Rhys eram como duas sombras embrulhadas na cama, uma pálida, outra escura, apesar de haver coisas mais escuras ainda do que Nicca, muito mais escuras.
A porta do quarto abriu-se sem qualquer ruído e, como se eu o tivesse invocado, Doyle entrou lentamente no quarto. Fechou a porta por trás dele tão silenciosamente como quando a abrira. Nunca entendi como é que ele fazia aquilo. Se tivesse sido eu a abrir a porta, teria feito barulho. Mas quando Doyle queria, movia-se como o próprio cair da noite: silencioso, leve, imperceptível até nos apercebermos que apagaram a luz e que estamos sozinhos no escuro com algo que não conseguimos ver. A alcunha dele era o Negrume da Rainha, ou simplesmente Negrume. A rainha diria: onde está o meu Negrume? Tragam-me o meu Negrume!, o que significava que, em breve, seria derramado o sangue de alguém ou que alguém morreria. Mas agora, estranhamente, ele era o meu Negrume.
Nicca era castanho, todavia, Doyle era preto. Não era preto como a cor preta da pele humana, mas da absoluta escuridão de um céu à meia-noite. Ele não desapareceu no quarto obscuro, porque era mais escuro do que as sombras iluminadas pelo luar. Era uma forma sombria que deslizava na minha direcção. Os jeans e a t-shirt pretos dele serviam-lhe como uma segunda pele. Nunca o vira usar qualquer coisa que não fosse monocromática, excepto as jóias e as espadas. Até o coldre de ombro e a arma dele eram pretos. Afastei-me da janela para me colocar de pé, à medida que ele se aproximava de mim. Teve de interromper o seu movimento deslizante quando chegou à cama king-size, visto mal haver espaço onde se pudesse comprimir entre a cama e as portas do armário. A visão de Doyle a deslizar ao longo da parede sem tocar na cama era simplesmente impressionante. Ele era trinta centímetros mais alto do que eu e, provavelmente, era quarenta e cinco quilos mais pesado do que eu, maioritariamente compostos por músculo. Eu teria batido contra a cama uma dúzia de vezes, no mínimo. Ele passou facilmente por aquele espaço estreito como se qualquer outra pessoa devesse ser capaz de o fazer.
A cama ocupava grande parte do quarto, por isso, quando Doyle finalmente me alcançou, fomos obrigados a ficar de pé, quase encostados um ao outro. Ele conseguiu manter um pequeno espaço de intervalo entre nós com o intuito de nem mesmo as nossas roupas se roçarem. Era uma distância artificial. Teria sido mais natural se nos tocássemos, e só o facto de ele se esforçar tanto por não o fazer levou a que se tornasse algo ainda mais embaraçoso. Era algo que me incomodava, contudo, desistira de discutir com Doyle acerca do seu afastamento. Quando o questionava quanto ao assunto, ele apenas respondia: quero que me veja como alguém especial, não quero ser somente mais um entre a ralé. No início, parecera-me uma atitude nobre, mas agora era meramente irritante. Aqui, junto à janela, a iluminação era mais forte, o que me permitia ver parte da curva delicada das suas elevadas maçãs do rosto, o queixo demasiado afiado, as zonas curvas das suas orelhas e o brilho prateado dos brincos que lhe delineavam a cartilagem até às pequenas argolas situadas exactamente no topo pontiagudo.
Só as orelhas pontiagudas denunciavam que ele era mestiço, como eu própria, como Nicca. Podia esconder as orelhas com todo aquele cabelo, mas quase nunca o fazia. O seu cabelo escuro como breu estava penteado como de costume: com uma trança bem apertada que fazia com que o seu cabelo, visto de frente, parecesse ser bastante curto. A ponta da trança, porém, chegava-lhe aos tornozelos. Ele sussurrou: ouvi qualquer coisa, a voz dele soava sempre num tom baixo e sombrio, como um licor adocicado para o ouvido e não para o paladar. Ergui o olhar para ele. Qualquer coisa ou eu a andar por aqui? Os seus lábios contorceram-se, era a expressão mais próxima que ele normalmente tinha de um sorriso. A Meredith. Abanei a cabeça, de braços cruzados. Ter dois guardas na minha cama não é protecção suficiente?, sussurrei de volta. São bons homens, mas não são como eu. Franzi-lhe o sobrolho. Estás a dizer que não confias em mais ninguém além de ti para me manter a salvo?, as nossas vozes soavam num tom calmo, praticamente pacífico, tal como as vozes de pais preocupados em não acordar os filhos adormecidos. Era reconfortante saber que Doyle estava tão alerta. De entre todos os Sidhe, ele era um dos melhores guerreiros. Era bom tê-lo do meu lado». In Laurell Hamilton, Carícias da Noite, 2003, Edições Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-493-8.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT