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«Quando,
depois de cumprida a penitência que me espera no Purgatório, o Altíssimo mandar
os seus acólitos informar-se do meu desejo sobre a próxima reencarnação, vou requerer
que me mandem de novo para a Holanda. Desta vez, porém, não como estrangeiro,
pois, mesmo renascido, não me vejo capaz de suportar outros 50 anos, como os
que agora passei, a observar um povo cujo comportamento me perturba o entendimento
e me mantém num estado de permanente transtorno, muito semelhante às inquietas mudanças
do clima do seu território. Desejo, pois, renascer holandês, pouco se me dando de
vir de novo a ver a luz em Groningen ou no Limburgo, já que a experiência prova
que nem todos os moradores do Norte são soturnos, nem a generalidade dos que se
encostam à Bélgica demonstra uma permanente alegria de viver. Quero, sim, renascer
mediano. Não na postura, pois nessa me agradará o metro e noventa, mas nos desejos
e nas inclinações. Espero ver-me conformista, respeitador da lei, com ideias sérias
sobre a religião, a minha e a alheia, e, quando conveniente, saber mostrar que me
interessa a política, me preocupam as crises parlamentares, que sofro com as desigualdades
e as misérias do mundo. Também quero praticar um desporto, de preferência um
dos que requerem uniforme e equipamento. Talvez o ciclismo. Porque sempre me
enternece a vista dos ciclistas que, de camisolas garridas e calções reluzentes
a apertar-lhes as coxas, elmos aerodinâmicos, luvas e bidons, pedalam desenfreados
no pólder, imaginando-se no Tour.
Espero
ainda que a natação e a patinagem no gelo se me tornem uma segunda natureza e, quando
em companhia, mesmo sem mais informação que a de um ou outro folheto, debite opiniões
definitivas sobre a arte, a cultura e os vinhos. Passadas as febres da juventude,
na minha actual existência tenho-me mostrado singularmente sedentário. Daí a
esperança de que, como bom e mediano holandês, na futura reencarnação viaje mais.
Talvez seja mesmo o que eu de verdade apreciaria, não somente para ver e visitar,
mas impulsionado por uma finalidade concreta. Pouco depois da minha chegada aqui,
já noutra oportunidade o relatei, conheci um holandês que, ao gosto pelas viagens,
acrescentava o propósito de bater o recorde estabelecido pelo seu progenitor, o
qual, com documentos, provava ter dançado em 22 países. Em meados de Janeiro de
1989 os jornais relatavam a façanha de um Roel Hendriks que, pelo gosto de contactar
com as populações locais e conhecer as respectivas culturas, tinha atravessado a
nado nada menos de 39 rios, cada um mais imponente do que o anterior: o Amazonas,
o Orinoco, o Ganges, o Volga, o Tigre, o Zaire, o Iang-Tsé, o Mississípi... Recentemente
li sobre uma jovem que igualmente viaja pelo interesse de contactar outras
culturas, e a esse louvável objectivo acrescenta o de querer ver in loco
como são as duzentas e tal nações do Planeta.
Pessoalmente,
talvez me proponha um objectivo mais modesto, como o de viajar em 50 linhas de caminho-de-ferro,
ou o de percorrer toda a costa da Noruega. Seja como for, viajarei com um fim e
não, como até agora, sem plano nem objectivo, e sempre a temer as multidões que
atravancam os monumentos e os museus. Também me quero diferente no fascínio pelas
iguarias. Sem ser o que se chama um gastrónomo, tenho certamente dedicado um tempo
excessivo aos prazeres da mesa e arregalam-se-me os olhos à perspectiva de uma lagosta
à l’armoricaine, de uma choucroute, do dourado de um bacalhau com
natas. Tenho, mea culpa, feito viagens com o único propósito de saborear
um arroz de pato. Desses pecados me arrependo e desde já prometo melhoras. Sobriamente
me contentarei com um hutspot. Comerei muito pão, beberei muito leite e
cerveja, os meus destemperos ficarão por uma piza de vez em quando». In J.
Rentes de Carvalho, A Ira de Deus sobre a Europa, Quetzal Editores, 2016,
ISBN-978-989-722-338-9.
Cortesia de
QuetzalE/JDACT