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O Algarismo e o Número
«(…) Tão difícil como esperava. Interrogaram-me sobre as
teorias de Roberto Grosseteste, e creio que os deixei impressionados. Há uns
meses pude estudar o seu tratado sobre a expressão matemática do pensamento e
os seus comentários e correcções ao sistema de observação e experimentação de
Aristóteles. Durante mais de uma hora dissertei sobre a relação entre a matemática
e a razão e a necessidade de conjugar ambas, na altura de planificar um
edifício. E as provas práticas? Bem, essas foram, pelo menos para mim, as mais
fáceis, já sabes que sou muito hábil a manejar o martelo e o escopro. Tive que
talhar uma imagem de São Pedro, e para tornar as coisas mais difíceis disseram-me
que tinha que ser de vulto redondo, totalmente isolada. Depois encarregaram-me
de desenhar a planta de uma catedral nova. Tracei-a com uma girola simples, com
cinco capelas semicirculares, um cruzeiro de uma só nave e três naves no tramo
dos pés. Bom, simples mas eficaz. Não o penses, irmão. Tive de resolver alguns
problemas da estrutura do cruzeiro, pois aumentei a nave do transepto destacando-o
muito na planta, o que me obrigou a introduzir uma inovação técnica nessa zona
do templo. E sobre a luz, perguntaram-te sobre a luz? Nem uma única palavra;
mas, tal como me tinhas aconselhado, falei-lhes do que ensinaste sobre a
importância da luz e ficaram muito surpreendidos. A luz é um sinal de Deus,
disse o mestre João. E Deus está presente no mundo através da luz. Nós
construímos catedrais, mas Deus é o único que pode criar a luz. A luz torna
possível a beleza do mundo, a harmonia da natureza. Nós, os arquitectos, recebemos
um dom extraordinário de Deus: podemos fazer com que a luz ilumine a pedra, que
a ressalte; somos os únicos capazes de captar a luz no interior de uma catedral
e dar-lhe vida. Entendes, filho? Henrique olhou entusiasmado para o pai. Não,
pai. Não tem importância. Cada coisa a seu tempo, a seu tempo.
Um manto de pérolas de orvalho tinha matizado os campos de
Burgos. Arnal Rendol madrugara para ir ao velório do mestre Ricardo, o construtor
da igreja abacial do mosteiro feminino de Las Huelgas, um dos principais do
reino de Castela. O mestre Ricardo chegara de Paris havia quinze anos e tinha trabalhado
durante todo esse tempo na igreja abacial, segundo os cânones do novo estilo. Fundado
em 1180 pelos reis Afonso VIII e sua esposa Leonor de Inglaterra, filha de Henrique
II e de Leonor de Aquitânia, o mosteiro de Las Huelgas só admitia noviças de
sangue real ou filhas da mais alta nobreza; fora construído com o propósito de o
converter em panteão dos reis de Castela. A abadessa era tão poderosa que apenas
dependia hierarquicamente do papa e do abade de Cîteaux. O mestre Ricardo tinha
contratado o mestre Arnal para pintar uns frescos em Las Huelgas, e graças a
esse trabalho tinham-lhe surgido muitos outros por toda a comarca de Burgos. O bispo
Maurício também se deslocara a Las Huelgas, pois havia já alguns anos que
acalentava a ideia de construir uma nova catedral em Burgos, que substituísse a
que o rei Afonso VI fundara havia mais de um século. O bispo Maurício era um
homem de grande influência no reino. Amigo e assessor da rainha Berenguela, viajara
até França e, em Paris, onde estudara Filosofia, Teologia e Leis, entusiasmara-se
com as obras da Catedral de Notre-Dame. Desde que fora nomeado bispo de Burgos no
ano de 1213, ansiava construir na sua cidade uma catedral como aquela, que crescia
até ao céu na ilha chamada La Cité, no coração de Paris, que o Sena rodeava como
os braços de um amante. O bispo Maurício tinha pensado que o mestre Ricardo poderia
ser o arquitecto adequado para construir a sua nova catedral, mas a morte
repentina do mestre francês estragara-lhe os planos.
Bom-dia, mestre Arnal. Foi uma grande perda, disse o bispo
Maurício cumprimentando o pintor de frescos. Assim é, senhor Bispo. O mestre Ricardo
era um bom homem. Eu tinha pensado nele para dirigir as obras da nova catedral que
tenho em mente construir, se Deus quiser, para maior glória do Redentor e na nossa
mãe, a Virgem Maria. Vós trabalháveis com ele, acaso seríeis capaz de...? Não, senhor
bispo Maurício, não. Eu só sei pintar; não tenho capacidade nem preparação para
dirigir uma obra de tal envergadura, apressou-se a responder Arnal. Bem, nesse
caso não restará outro remédio senão procurar um arquitecto em França; ali há muitos
e muito bons. Ponderais na verdade uma nova catedral? Há tempo que dou voltas à
ideia. Até agora não foi possível por príncipe Henrique ser menor de idade e pelos
problemas sucessórios, mas com Fernando sentado no trono e a sua mãe, Berenguela,
a seu lado, creio que chegou o momento de pensar nisso a sério. Isso seria uma consecução
extraordinária, Eminência. Uma nova catedral, mestre Arnal. Uma igreja que glorifique
o nome de Deus e o de sua mãe, que seja o orgulho do reino de Castela e da vila
de Burgos. Ah, quantas noites sonhei com ela! Uma catedral à semelhança das que
estão a construir em Paris ou em Chartres. Há já quatro anos que lá estive e
ainda recordo impressionado como ascendiam até ao céu os seus muros, as suas abóbadas
e os seus arcos ligeiros e graciosos que, construídos com pedras, pareciam sustentados
pelo vento. Eu limito-me a pintar paredes, dom Maurício». In José Luís Corral, El Número de
Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de
Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT