sábado, 17 de dezembro de 2016

O Número de Deus. José Corral. «O bispo Maurício era um homem de grande influência no reino. Amigo e assessor da rainha Berenguela, viajara até França e, em Paris, onde estudara Filosofia, Teologia…»

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O Algarismo e o Número
«(…) Tão difícil como esperava. Interrogaram-me sobre as teorias de Roberto Grosseteste, e creio que os deixei impressionados. Há uns meses pude estudar o seu tratado sobre a expressão matemática do pensamento e os seus comentários e correcções ao sistema de observação e experimentação de Aristóteles. Durante mais de uma hora dissertei sobre a relação entre a matemática e a razão e a necessidade de conjugar ambas, na altura de planificar um edifício. E as provas práticas? Bem, essas foram, pelo menos para mim, as mais fáceis, já sabes que sou muito hábil a manejar o martelo e o escopro. Tive que talhar uma imagem de São Pedro, e para tornar as coisas mais difíceis disseram-me que tinha que ser de vulto redondo, totalmente isolada. Depois encarregaram-me de desenhar a planta de uma catedral nova. Tracei-a com uma girola simples, com cinco capelas semicirculares, um cruzeiro de uma só nave e três naves no tramo dos pés. Bom, simples mas eficaz. Não o penses, irmão. Tive de resolver alguns problemas da estrutura do cruzeiro, pois aumentei a nave do transepto destacando-o muito na planta, o que me obrigou a introduzir uma inovação técnica nessa zona do templo. E sobre a luz, perguntaram-te sobre a luz? Nem uma única palavra; mas, tal como me tinhas aconselhado, falei-lhes do que ensinaste sobre a importância da luz e ficaram muito surpreendidos. A luz é um sinal de Deus, disse o mestre João. E Deus está presente no mundo através da luz. Nós construímos catedrais, mas Deus é o único que pode criar a luz. A luz torna possível a beleza do mundo, a harmonia da natureza. Nós, os arquitectos, recebemos um dom extraordinário de Deus: podemos fazer com que a luz ilumine a pedra, que a ressalte; somos os únicos capazes de captar a luz no interior de uma catedral e dar-lhe vida. Entendes, filho? Henrique olhou entusiasmado para o pai. Não, pai. Não tem importância. Cada coisa a seu tempo, a seu tempo.
Um manto de pérolas de orvalho tinha matizado os campos de Burgos. Arnal Rendol madrugara para ir ao velório do mestre Ricardo, o construtor da igreja abacial do mosteiro feminino de Las Huelgas, um dos principais do reino de Castela. O mestre Ricardo chegara de Paris havia quinze anos e tinha trabalhado durante todo esse tempo na igreja abacial, segundo os cânones do novo estilo. Fundado em 1180 pelos reis Afonso VIII e sua esposa Leonor de Inglaterra, filha de Henrique II e de Leonor de Aquitânia, o mosteiro de Las Huelgas só admitia noviças de sangue real ou filhas da mais alta nobreza; fora construído com o propósito de o converter em panteão dos reis de Castela. A abadessa era tão poderosa que apenas dependia hierarquicamente do papa e do abade de Cîteaux. O mestre Ricardo tinha contratado o mestre Arnal para pintar uns frescos em Las Huelgas, e graças a esse trabalho tinham-lhe surgido muitos outros por toda a comarca de Burgos. O bispo Maurício também se deslocara a Las Huelgas, pois havia já alguns anos que acalentava a ideia de construir uma nova catedral em Burgos, que substituísse a que o rei Afonso VI fundara havia mais de um século. O bispo Maurício era um homem de grande influência no reino. Amigo e assessor da rainha Berenguela, viajara até França e, em Paris, onde estudara Filosofia, Teologia e Leis, entusiasmara-se com as obras da Catedral de Notre-Dame. Desde que fora nomeado bispo de Burgos no ano de 1213, ansiava construir na sua cidade uma catedral como aquela, que crescia até ao céu na ilha chamada La Cité, no coração de Paris, que o Sena rodeava como os braços de um amante. O bispo Maurício tinha pensado que o mestre Ricardo poderia ser o arquitecto adequado para construir a sua nova catedral, mas a morte repentina do mestre francês estragara-lhe os planos.
Bom-dia, mestre Arnal. Foi uma grande perda, disse o bispo Maurício cumprimentando o pintor de frescos. Assim é, senhor Bispo. O mestre Ricardo era um bom homem. Eu tinha pensado nele para dirigir as obras da nova catedral que tenho em mente construir, se Deus quiser, para maior glória do Redentor e na nossa mãe, a Virgem Maria. Vós trabalháveis com ele, acaso seríeis capaz de...? Não, senhor bispo Maurício, não. Eu só sei pintar; não tenho capacidade nem preparação para dirigir uma obra de tal envergadura, apressou-se a responder Arnal. Bem, nesse caso não restará outro remédio senão procurar um arquitecto em França; ali há muitos e muito bons. Ponderais na verdade uma nova catedral? Há tempo que dou voltas à ideia. Até agora não foi possível por príncipe Henrique ser menor de idade e pelos problemas sucessórios, mas com Fernando sentado no trono e a sua mãe, Berenguela, a seu lado, creio que chegou o momento de pensar nisso a sério. Isso seria uma consecução extraordinária, Eminência. Uma nova catedral, mestre Arnal. Uma igreja que glorifique o nome de Deus e o de sua mãe, que seja o orgulho do reino de Castela e da vila de Burgos. Ah, quantas noites sonhei com ela! Uma catedral à semelhança das que estão a construir em Paris ou em Chartres. Há já quatro anos que lá estive e ainda recordo impressionado como ascendiam até ao céu os seus muros, as suas abóbadas e os seus arcos ligeiros e graciosos que, construídos com pedras, pareciam sustentados pelo vento. Eu limito-me a pintar paredes, dom Maurício». In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.

Cortesia de Planeta Editora/JDACT