jdact
A
Noite
«(…)
Passeia os dedos pelos braços transpirados. O calor redobrou para a noite.
Mole, peganhento, agarra-se, molda-se a tudo, pega, adere. Até aos olhos.
Inclinada na varanda, tenta distinguir qualquer coisa. O suor colou-lhe os
cabelos à pele branda do pescoço; e às pernas altas, a camisa de noite. Até
mover as mãos na balaustrada morna de mármore é penoso. A luz do quarto
projecta-se no chão, um risco duro, vibrante, a tocar-lhe os pés descalços. Até
mover os pés no chão tépido de mármore é penoso. Move-se devagar, dificilmente:
os braços caídos, tombados, a boca seca, a língua grossa. O calor
intensificou-se para a noite, rebola-se, desloca-se devagar, cola-lhe os
cabelos à pele branda do pescoço e a camisa de noite às coxas. Nem os dedos
ergue para limpar o suor que lhe marca o lábio superior, mole, apática, até o
respirar lhe é penoso. Sem um mínimo pensamento, sem qualquer vontade, ela
move-se devagar com a camisa de noite pegada às pernas, os braços tombados, a
boca entreaberta. No limiar do quarto os movimentos tornam-se mais lentos e, lá
dentro, olha com indiferença para a cama, sobre a qual se deixa cair de
qualquer maneira. No tecto, pintadas, as duas cabeças de anjo que parecem
dormir tentam capturar-lhe a atenção, como sempre.
O Odor
O
seu perfume estende-se por toda a casa. Não o perfume exterior, fictício, que
dentro dos pequenos frascos se detém, se concentra, ou que nos grandes se
dilui, se subtiliza, antes um odor forte, intenso: um perfume inconfundível,
obcecante. Ergue a cabeça, move os braços, as pernas, e ele solta-se, devagar,
envolvente, macio. Escapava-se-lhe da pele, da vagina, para se enroscar nos
outros, nas coisas, para invadir a casa, aveludado, tenso, vibrante. A mulher
tira da caixa transparente um colar de pedras azuis, depois um branco, outro
cor-de-rosa de contas redondas, enormes, ergue os braços e prende um após outro
no pescoço, a caírem sobre o peito, nos ombros, sobre a pele, pesados. Frágil,
dá ideia de não lhes poder aguentar o peso, ou o excesso de cor que se lhe
alastra até aos pulsos enquanto ergue com ambas as mãos os cabelos e se olha,
absorta, reflectida no espelho antigo que lhe decora o quarto. Afinal apenas
sente a fricção aderente da combinação de renda, única coisa que consegue
aquentar sobre o corpo na atmosfera peganhenta, doce. Descalça, vai até à
janela e encosta a testa à persiana. Todos os seus movimentos são inúteis,
movimentos de ócio, sem qualquer fim, sem qualquer futuro; gastam-se,
consomem-se mal os completa, desfazem-se mal ela os repete. Frágil, de uma
magreza, de uma palidez frágil, repete se na mesma apatia de sempre,
quotidianamente, sem passado, indiferente e raivosa. Percorre o quarto
arrastando os pés na alcatifa. O seu perfume estende-se por toda a parte. Um
odor acre, interno, rasgado a partir do momento em que se desprende dela:
rasgado, dilacerado, seco. Mexe as pernas, os cabelos caem-lhe agora sobre os
ombros. Arranca os colares um por um, a combinação desce-lhe, fá-la escorregar
pelos quadris num só movimento de libertação. Estende o braço: a ventoinha, num
ruído áspero, metálico, veloz, desprende uma frescura boa, salutar, que lhe faz
cerrar os olhos e lhe atira os cabelos para trás numa espécie de bailado
suspenso». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações
Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
Cortesia PEAmérica/JDACT