quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

As Horas Distantes. Kate Morton. «Um conto antigo, os vestígios de grades e fechaduras de uma época em que as pessoas acreditavam nessas coisas. Boatos sobre monstros em fossos»

jdact
«Silêncio... Consegues ouvi-lo? As árvores conseguem. São as primeiras a saber que está a chegar. Escuta! As árvores da floresta profunda e escura, tremendo e agitando nervosamente suas folhas como lâminas finíssimas de prata batida; o vento matreiro, serpeando pelas suas copas, sussurrando que não tardará. As árvores sabem, pois são antiquíssimas e outrora testemunharam tudo isto.
Não há luar. Não há luar quando o Homem de Lama chega. A noite calçou um par de luvas finas de couro; estendeu um lençol negro sobre a terra; um artifício, um disfarce, um feitiço para fazer adormecer, de modo que tudo sob ele repouse pacificamente. Escuridão, mas não somente, pois há nuances e graus e texturas em tudo. Olhe: a lanosidade áspera das florestas densas, os rectângulos acolchoados dos campos, o melaço liso do fosso. E ainda assim. A menos que você tenha muito azar, não deve ter notado que algo se moveu onde não devia. És verdadeiramente afortunado. Pois não há ninguém que veja o Homem de Lama se levantar e viva para contar a história. Ali, estás a ver? O fosso negro, luzidio, o fosso encharcado de lama, já não está plano. Uma bolha apareceu, lá na parte mais larga, uma bolha arfante, um estremecimento de minúsculas ondulações, uma sugestão... Porém desviaste o olhar! Como fostes sensato ao fazê-lo. Tais visões como esta não são para pessoas como tu. Em vez disso, a nossa atenção irá virar-se para o castelo, pois lá algo também se move. Bem no alto da torre. Olhe bem e verá. Uma menina afasta os cobertores. Ela foi colocada na cama há várias horas; num quarto adjacente, a sua ama ressona suavemente, sonhando com sabão, lírios e copos altos de leite fresco e quente. Mas alguma coisa acordou a menina; ela senta-se furtivamente, move-se de lado pelo lençol branco e limpo e coloca os pés no chão, um ao lado do outro; dois blocos estreitos, pálidos, no chão de madeira.
Não há Lua para contemplar nem há para iluminar. Ainda assim, é atraída até à janela. O vidro pontilhado é frio; ela pode sentir o ar gelado da noite cintilando enquanto sobe no alto da estante de livros, senta-se sobre a fileira de livros infantis favoritos, agora descartados, vítimas da sua vontade de crescer e se afastar deles. Ajeita a camisola ao redor do topo das coxas pálidas e descansa o rosto no vão onde um joelho branco se encontra com o outro. O mundo está lá fora, as pessoas movem-se nele com regularidade e precisão, como bonecos de corda. Algum dia, em breve, ela pretende vê-lo por si mesma; pois esse castelo pode ter trancas em todas as portas e grades nas janelas, mas isso é para manter a outra coisa lá fora, não para mantê-la ali dentro. A outra coisa.
Ela ouviu histórias a respeito dele. Ele é uma história. Um conto antigo, os vestígios de grades e fechaduras de uma época em que as pessoas acreditavam nessas coisas. Boatos sobre monstros em fossos que ficam à espreita para atacar as jovens belas. Um homem que há muito tempo sofreu um grande mal; que busca vingança por sua perda, incessantemente. Mas a menina, que franziria a testa se fosse descrita dessa forma, já não se perturba com monstros e contos de fadas infantis. Ela é inquieta, é moderna e crescida, e anseia escapar dali. Esta janela, este castelo, deixaram de satisfazer, mas por enquanto é tudo que tem e, assim, ela olha tristemente através da vidraça. Lá fora, ao longe, na fenda enrugada entre as colinas, a vila sonolentamente adormece. Um comboio lento e distante, o último da noite, assinala a chegada: uma chamamento solitário ao qual não obtém resposta, e o chefe da estação, em um engomado chapéu de pano, sai tropegamente para levantar o sinal. Nas florestas ao redor, um caçador furtivo faz pontaria e sonha em regressar à sua cama, enquanto na periferia da vila, numa cabana com a tinta a pelar, se ouve o choro de um recém-nascido. Acontecimentos absolutamente comuns num mundo onde tudo faz sentido. Onde as coisas são vistas quando estão lá; cuja falta é sentida se não estão. Um mundo bem diferente daquele para o qual a menina despertou. Pois lá em baixo, mais perto do que ela se lembrou de olhar, algo sucede naquele instante.
O fosso começou a respirar. Bem no fundo, atolado na lama, o coração do homem enterrado começa a bater com um barulho encharcado. Um ruído baixo, como o gemido do vento, mas se ergue das profundezas e paira tensamente acima da superfície. A menina o ouve; ou melhor, pressente, pois os alicerces do castelo estão unidos à lama e o gemido filtra-se pelas pedras, sobe as paredes, um andar após o outro, imperceptivelmente através da estante de livros onde ela está sentada. Um livro antigamente tão amado cai no chão e a menina na torre sufoca um grito de susto. O Homem de Lama abre um dos olhos. Penetrante, súbito, desloca-o de um lado para o outro. Estará a pensar, mesmo nesse instante, na família que perdeu? A bonita mulherzinha e no par de bebés roliços e pálidos que deixou para trás; ou será que a sua mente recua ainda mais, para os dias de sua infância, quando corria com seu irmão pelos campos de hastes longas e claras; ou seus pensamentos estarão, talvez, na outra mulher, aquela que o amava antes de sua morte? Aquela cuja lisonja e atenções e recusa em ser rejeitada custou tudo ao Homem de Lama...» In Kate Morton, As Horas Distantes, 2010, Porto Editora, 2012, ISBN-978-972-004-355-9.

Cortesia de PEditora/JDACT