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«Silêncio... Consegues ouvi-lo? As árvores
conseguem. São as primeiras a saber que está a chegar. Escuta! As árvores da
floresta profunda e escura, tremendo e agitando nervosamente suas folhas como
lâminas finíssimas de prata batida; o vento matreiro, serpeando pelas suas
copas, sussurrando que não tardará. As árvores sabem, pois são antiquíssimas e
outrora testemunharam tudo isto.
Não há luar. Não há luar quando o Homem de
Lama chega. A noite calçou um par de luvas finas de couro; estendeu um lençol
negro sobre a terra; um artifício, um disfarce, um feitiço para fazer adormecer,
de modo que tudo sob ele repouse pacificamente. Escuridão, mas não somente,
pois há nuances e graus e texturas em tudo. Olhe: a lanosidade áspera das
florestas densas, os rectângulos acolchoados dos campos, o melaço liso do
fosso. E ainda assim. A menos que você tenha muito azar, não deve ter notado
que algo se moveu onde não devia. És verdadeiramente afortunado. Pois não há
ninguém que veja o Homem de Lama se levantar e viva para contar a história.
Ali, estás a ver? O fosso negro, luzidio, o fosso encharcado de lama, já não
está plano. Uma bolha apareceu, lá na parte mais larga, uma bolha arfante, um
estremecimento de minúsculas ondulações, uma sugestão... Porém desviaste o
olhar! Como fostes sensato ao fazê-lo. Tais visões como esta não são para pessoas
como tu. Em vez disso, a nossa atenção irá virar-se para o castelo, pois lá
algo também se move. Bem no alto da torre. Olhe bem e verá. Uma menina afasta os
cobertores. Ela foi colocada na cama há várias horas; num quarto adjacente, a sua
ama ressona suavemente, sonhando com sabão, lírios e copos altos de leite
fresco e quente. Mas alguma coisa acordou a menina; ela senta-se furtivamente,
move-se de lado pelo lençol branco e limpo e coloca os pés no chão, um ao lado
do outro; dois blocos estreitos, pálidos, no chão de madeira.
Não há Lua para contemplar nem há para iluminar.
Ainda assim, é atraída até à janela. O vidro pontilhado é frio; ela pode sentir
o ar gelado da noite cintilando enquanto sobe no alto da estante de livros,
senta-se sobre a fileira de livros infantis favoritos, agora descartados,
vítimas da sua vontade de crescer e se afastar deles. Ajeita a camisola ao
redor do topo das coxas pálidas e descansa o rosto no vão onde um joelho branco
se encontra com o outro. O mundo está lá fora, as pessoas movem-se nele com
regularidade e precisão, como bonecos de corda. Algum dia, em breve, ela
pretende vê-lo por si mesma; pois esse castelo pode ter trancas em todas as
portas e grades nas janelas, mas isso é para manter a outra coisa lá fora, não
para mantê-la ali dentro. A outra coisa.
Ela ouviu histórias a respeito dele. Ele é
uma história. Um conto antigo, os vestígios de grades e fechaduras de uma
época em que as pessoas acreditavam nessas coisas. Boatos sobre monstros em
fossos que ficam à espreita para atacar as jovens belas. Um homem que há muito
tempo sofreu um grande mal; que busca vingança por sua perda, incessantemente. Mas
a menina, que franziria a testa se fosse descrita dessa forma, já não se
perturba com monstros e contos de fadas infantis. Ela é inquieta, é moderna e
crescida, e anseia escapar dali. Esta janela, este castelo, deixaram de
satisfazer, mas por enquanto é tudo que tem e, assim, ela olha tristemente
através da vidraça. Lá fora, ao longe, na fenda enrugada entre as colinas, a
vila sonolentamente adormece. Um comboio lento e distante, o último da noite, assinala
a chegada: uma chamamento solitário ao qual não obtém resposta, e o chefe da
estação, em um engomado chapéu de pano, sai tropegamente para levantar o sinal.
Nas florestas ao redor, um caçador furtivo faz pontaria e sonha em regressar à
sua cama, enquanto na periferia da vila, numa cabana com a tinta a pelar, se
ouve o choro de um recém-nascido. Acontecimentos absolutamente comuns num mundo
onde tudo faz sentido. Onde as coisas são vistas quando estão lá; cuja falta é
sentida se não estão. Um mundo bem diferente daquele para o qual a menina despertou.
Pois lá em baixo, mais perto do que ela se lembrou de olhar, algo sucede
naquele instante.
O fosso começou a respirar. Bem no fundo,
atolado na lama, o coração do homem enterrado começa a bater com um barulho
encharcado. Um ruído baixo, como o gemido do vento, mas se ergue das
profundezas e paira tensamente acima da superfície. A menina o ouve; ou melhor,
pressente, pois os alicerces do castelo estão unidos à lama e o gemido
filtra-se pelas pedras, sobe as paredes, um andar após o outro,
imperceptivelmente através da estante de livros onde ela está sentada. Um livro
antigamente tão amado cai no chão e a menina na torre sufoca um grito de susto.
O Homem de Lama abre um dos olhos. Penetrante, súbito, desloca-o de um lado para
o outro. Estará a pensar, mesmo nesse instante, na família que perdeu? A bonita
mulherzinha e no par de bebés roliços e pálidos que deixou para trás; ou será
que a sua mente recua ainda mais, para os dias de sua infância, quando corria
com seu irmão pelos campos de hastes longas e claras; ou seus pensamentos
estarão, talvez, na outra mulher, aquela que o amava antes de sua morte? Aquela
cuja lisonja e atenções e recusa em ser rejeitada custou tudo ao Homem de
Lama...» In Kate Morton, As Horas Distantes, 2010, Porto Editora, 2012,
ISBN-978-972-004-355-9.
Cortesia de
PEditora/JDACT