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de Julho de 1917. Fátima
«Lúcia
olhou para o céu e viu a Senhora a descer. A aparição veio de nascente, como
das duas vezes anteriores, emergindo como uma mancha cintilante do céu
carregado de nuvens. Não houve um tremor no Seu movimento deslizante.
Aproximou-se rapidamente e a Sua forma resplandescente imobilizou-se sobre a
azinheira, a dois metros e meio do solo. A Senhora estava de pé, e um brilho
mais ofuscante que o do próprio sol envolvia a Sua imagem cristalina. Lúcia
baixou o olhar, reagindo àquela beleza deslumbrante. À volta de Lúcia estava
uma multidão, ao contrário da primeira vez que a Senhora aparecera, há dois
meses. Nessa altura, apenas Lúcia, Jacinta e Francisco andavam pelos campos, a
guardar as ovelhas da família. Os primos tinham sete e nove anos. Ela era a mais
velha, com dez anos, e tinha consciência disso. À sua direita, Francisco, de
calças compridas e barrete, ajoelhou-se. À esquerda, Jacinta, de blusa preta e
com um lenço a cobrir-lhe o cabelo escuro, ajoelhou-se também. Lúcia levantou a
cabeça e reparou de novo na multidão. As pessoas tinham começado a juntar-se na
véspera, muitas vindas das aldeias vizinhas e algumas acompanhadas de crianças
aleijadas, na esperança de que a Senhora as curasse. O prior de Fátima
declarara que a aparição era uma fraude e exortara todos a afastarem-se. É o Diabo em acção, dissera
ele, mas as pessoas não lhe tinham dado ouvidos, e um dos paroquianos até o
apelidara de louco, visto que o Diabo nunca incitaria ninguém a rezar. Uma
mulher no meio da multidão gritava, chamando impostores a Lúcia e aos primos,
jurando que Deus havia de vingar aquele sacrilégio. Manuel Marto, tio de Lúcia
e pai de Jacinta e de Francisco, estava atrás deles e Lúcia ouviu-o mandar
calar a mulher. Era respeitado em todo o vale por ser um homem que conhecia o
mundo para além da serra de Aire. Os seus olhos castanhos argutos e a sua calma
eram um conforto para Lúcia. Era bom tê-lo por perto, ali no meio dos
desconhecidos. Tentou ignorar as palavras que os presentes gritavam na sua
direcção e abstraiu do aroma da hortelã e dos pinheiros e do odor intenso do
rosmaninho-silvestre. Os seus pensamentos, e depois o seu olhar, concentraram-se
na imagem da Senhora que pairava à sua frente. Só ela, Jacinta e Francisco viam
a Senhora, mas só ela e a prima a ouviam. Lúcia achou isto estranho, por que
motivo havia Francisco de ser excluído?, mas, durante a Sua primeira aparição,
a Senhora esclarecera que Francisco só iria para o Céu depois de rezar muitos
terços. Uma brisa suave atravessou o vale grande e fundo conhecido por Cova da
Iria. O terreno pertencia aos pais de Lúcia e estava repleto de oliveiras e
manchas de verdura. As ervas altas davam um feno excelente e a terra produzia
batatas, couves e milho. Muros de pedras empilhadas delimitavam os campos. A
maior parte deles já se desmoronara, o que Lúcia agradecia, porque assim as
ovelhas podiam pastar à vontade. Tinha a seu cargo guardar o rebanho da
família. Jacinta e Francisco haviam sido incumbidos da mesma responsabilidade
pelos pais, e nos últimos anos tinham passado muito tempo nos campos, a
brincar, a rezar e a ouvir Francisco a tocar flauta. Mas tudo isto mudara há
dois meses, quando se dera a primeira aparição. Desde então, tinham sido
importunados com perguntas constantes e alvo de troça dos que não acreditavam.
A mãe de Lúcia até a levara ao padre da paróquia, obrigando-a a dizer que
aquilo era tudo mentira. O padre ouvira o que ela contara e afirmara que não
era possível que Nossa Senhora descesse do Céu apenas para recomendar que
rezassem o terço todos os dias. Lúcia só encontrava consolo quando estava
sozinha e podia chorar livremente por si própria e pelo mundo. O céu escureceu,
e as sombrinhas que a multidão abrira para se proteger do sol começaram a
fechar-se. Lúcia levantou-se e gritou: tirem o chapéu, que eu estou a ver Nossa
Senhora! Os homens obedeceram de imediato e alguns benzeram-se, como que
pedindo perdão pela sua indelicadeza. Lúcia virou-se de novo para a visão. O
que me quer vossemecê?, perguntou ela. Não ofendas o Senhor nosso Deus, porque
Ele já foi muito ofendido. Quero que venhas aqui no décimo terceiro dia do mês
que vem e que continues a rezar o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário
para que haja paz no mundo e a guerra acabe. Só Ela poderá ajudar-vos. Lúcia
olhou fixamente para a Senhora. A forma era transparente, etérea, em vários
tons de amarelo, branco e azul, e o rosto belo, mas ensombrado pela tristeza.
Envergava um vestido até aos pés. Um véu cobria-lhe a cabeça e um rosário que
parecia feito de pérolas pendia-lhe das mãos postas. A voz era suave e
agradável, sem altos nem baixos, sempre com o mesmo tom reconfortante, como a
brisa que continuava a soprar sobre a multidão.
Lúcia
encheu-se de coragem e disse: quero pedir-lhe que nos diga quem é e que faça um
milagre para que todos acreditem que vossemecê nos apareceu. Continuem a vir
aqui todos os meses, neste mesmo dia. Em Outubro, dir-vos-ei quem sou e o que
pretendo, e farei um milagre em que todos terão de acreditar. Durante o último
mês, Lúcia pensara no que havia de dizer. Muitos tinham-na encarregado de pedir
pelos seus entes queridos e por outros que, de tão doentes, nem podiam falar.
Lembrou-se de um em especial. Pode curar o filho aleijado da Maria Carreira? Não
o curarei, mas farei que consiga ganhar a vida, desde que ela reze o terço
todos os dias. Lúcia achou estranho que uma senhora vinda do Céu impusesse
condições para conceder misericórdia, mas compreendeu que a devoção era
necessária. O padre da paróquia sempre afirmara que era esta a única maneira de
alcançar a graça de Deus. Sacrifiquem-se pelos pecadores, acrescentou a Senhora.
E digam muitas vezes, sobretudo quando fizerem algum sacrifício: ó Jesus, isto
é pelo Teu amor, pela conversão dos pecadores e para reparar as faltas
cometidas contra o Imaculado Coração de Maria. A Senhora abriu as mãos e
estendeu os braços, irradiando um brilho penetrante que envolveu Lúcia numa
onda de calor, como o do sol de Inverno num dia frio. A garota acolheu a
sensação e depois reparou que o brilho não se quedou nela nem nos primos; atravessou
a terra e o solo abriu-se. Isto era novo e diferente, e Lúcia assustou-se. Um mar
de fogo estendia-se diante
dela, numa visão terrível. No interior das chamas apareceram formas
enegrecidas, como pedaços de carne a rodopiar num caldeirão. Tinham aparência
humana, mas não se distinguiam as feições nem os rostos. Saltavam no meio das
labaredas, e os seus movimentos eram acompanhados por gritos e gemidos tão
lancinantes que Lúcia sentiu um calafrio na espinha. As pobres almas pareciam
despojadas de peso e de equilíbrio e estavam completamente à mercê do fogo que
as consumia. Surgiram também formas animalescas, algumas das quais Lúcia
reconheceu, mas todas tinham um aspecto medonho. Eram demónios, alimentavam as
chamas. Lúcia sentia-se aterrada e viu que Jacinta e Francisco também estavam
assustados. Tinham os olhos marejados de lágrimas, e ela queria consolá-los. Se
não fosse a Senhora, que pairava diante deles, também se teria descontrolado. Olhem
para Ela, segredou Lúcia aos primos». In Steve Berry, Terceiro Segredo, Publicações
dom Quixote, 2005, ISBN-978-972-202-914-8.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT