quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A Profecia de Istambul. Alberto S. Santos. «Agora, abraça-me de novo, Maria! Depois de um demorado amplexo, Roger de Flor afagou, repetidamente, a barriga da esposa»

jdact
O banquete de Adrianópolis. Março de 1305. Constantinopla e Adrianópolis
«(…) Vá, Maria, saberemos proteger-nos... e ela vai comigo!, confortou-a, apontando para um canto da sala, onde se encontrava uma caixa de sândalo que guardava a sua secreta relíquia, companhia segura de todas as batalhas, o segredo que era só dele. Maria debruçou um respeitoso olhar verde sobre o invólucro que albergava o objecto que o marido tanto reverenciava. Roger largou, delicadamente, os braços da esposa para ir buscar a caixa. Abriu-a, com cuidado, descobrindo a peça sagrada que protegia com o máximo das cautelas e que nunca abandonava, sobretudo nos momentos mais difíceis. Malditos corvos, fazem cá um chinfrim! Enxotada a passarada que não parava de crocitar, ambos se suspenderam sobre a preciosidade. Uma aura mágica emergiu no espaço, como que tomando o controlo das consciências cósmicas daqueles dois humanos. Viram-se apoderados pelo espírito da História, navegando sobre a crista de uma vertiginosa torrente. À frente, numa imensidão de água que era um espelho vivo, transcorriam aleatórios feixes de tempo. Roger e Maria não sabiam, ao certo, se passado, se futuro. Um silêncio denso como uma floresta virgem cercou os dois seres. Maria procurava as palavras certas para descrever as emoções. Roger, este objeto é..., é..., extraordinário..., inquietantemente fascinante..., conseguiu articular, devagar. O comandante da legião ibérica assentiu com a cabeça, enquanto olhava Maria e a misteriosa lança, alternadamente.
Sempre que a mostras, parece que o mundo se organiza para nos encher de estranhos poderes, para nos levar a outra dimensão da existência comentou, com a alma enlevada, a princesa búlgara. Mas, por outro lado, tenho tanto medo...!, asseverou, cobrindo as faces brancas com as mãos em concha, envoltas em castanhos cachos. Pressinto males e desgraças, massacres e holocaustos... Ai, Roger, que aperto no coração! Tem, de facto, muito poder, Maria... Se for usada para o bem...! Senão... Lá fora, surgiam os primeiros espíritos das trevas a fechar a tampa do dia, apagando do horizonte a última tinta violácea, que se derretia para além das muralhas de Teodósio. Senão?!... Senão quê, meu amo?!... Maria, ela deve voltar ao lugar de onde a tirei... e, então, não haverá desarmonia. Tenho esse encargo: carrego todo o seu poder, mas também o dever de assegurar a sua devolução ao sarcófago do último possuidor, o imperador Frederico II, de quem meu querido pai foi o falcoeiro. Maria, conhecedora dos poderes e presságios a que Roger se referia, bem como da obrigação de que era cativo, encheu o peito de ar e descarregou-o numa golfada, procurando libertar-se do peso que lhe oprimia o peito. Tens a certeza que fizeste bem em trazê-la para estas terras? Só o fiz por ser necessário reunir todas as forças da cristandade para conter os turcos. E não vês como os otomanos que não acabam os seus dias no campo de batalha fogem com o rabo entre as pernas da nossa legião de almogávares?!
Maria anuiu com a cabeça, apertando-se ainda mais contra o peito do esposo. Sabia que, não fora a chegada da Companhia, o Império Bizantino corria o risco de soçobrar perante o crescente poderio bélico dos turcos otomanos. Contudo, agora que os exércitos dos infiéis definharam, dizimados pelas tropas de Roger de Flor, os imperadores de Constantinopla procuravam já encontrar a melhor forma de se libertarem dos bravos guerreiros ibéricos que haviam chegado do Ocidente para os ajudarem. Se algum mal me acontecer, já sabes: deves fazer com que ela volte ao seu sagrado lugar! Caso contrário, as nossas almas não descansarão por toda a eternidade..., profetizou o comandante. Agora, abraça-me de novo, Maria! Depois de um demorado amplexo, Roger de Flor afagou, repetidamente, a barriga da esposa. Os viscosos corvos haviam voltado, trinando uma melodia cavernosa. O primaz dos almogávares fechou a caixa, protegendo a sacra relíquia que o acompanharia a Adrianópolis, e abriu a porta para afugentar, novamente, os despropositados pássaros. Porém, quando perscrutou o horizonte, estes haviam já, estranhamente, desaparecido da vista. Malditas aves! Nos últimos dias têm-se fartado de me importunar!...» In Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6. 
Cortesia de PEditora/JDACT