domingo, 25 de dezembro de 2016

Maya Jostein Gaarder. «Logo terei me acostumado à vida de viúvo. Também é uma forma de existir. Ao olhar para a grande foto em cores de Sheila, já não estremeço tanto quanto antes».

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Desde que eu era pequeno, o que não faz tanto tempo assim, sabia que teria sessenta e sete anos se chegasse a viver a mudança de milénio. Esse sempre foi para mim um pensamento fascinante e aterrador ao mesmo tempo. Tive de me despedir de Sheila neste século. Ela só chegou a fazer cinquenta e nove anos. Talvez volte a visitar a ilha da linha de mudança de data antes da passagem de século. Estou pensando em encerrar a carta a Vera numa cápsula do tempo, para que aí permaneça selada por mil anos. Quem sabe não se deva publicá-la até então, e o mesmo se pode dizer do manifesto. De qualquer modo, mil anos não são nada se comparados aos enormes períodos de tempo esboçados pelo manifesto. No entanto, mil anos são mais que suficientes para que se tenha apagado grande parte dos vestígios do que agora vivemos na Terra, e a história de Ana María Maya parecerá, na melhor das hipóteses, uma saga de um passado remoto. Sou velho o bastante para não me incomodar com o momento em que virá à luz o que quero contar. O mais importante é que seja contado, mais cedo ou mais tarde, e tampouco é necessário que seja eu a contar. Talvez por isso mesmo eu tenha começado a ruminar a ideia de uma cápsula do tempo. Espero que daqui a mil anos haja um pouco menos de barulho no mundo. Depois de ter lido mais uma vez a carta a Vera, sinto-me por fim capaz de organizar as roupas de Sheila. Já chegou a hora. Amanhã de manhã virão algumas pessoas do Exército da Salvação buscar tudo. Vão levar também os vestidos velhos, embora eu não acredite que consigam vendê-los. É uma sensação parecida com a de remover um ninho de andorinhas em que faz anos não há nenhum passarinho.
Logo terei me acostumado à vida de viúvo. Também é uma forma de existir. Ao olhar para a grande foto em cores de Sheila, já não estremeço tanto quanto antes. Apesar de toda essa retrospecção que preencheu minha vida nos últimos tempos, pode parecer um paradoxo o facto de que nem mesmo agora eu teria hesitado em tomar a bebida mágica de Vera. Teria tomado sem pestanejar, mesmo sem ter certeza de encontrar uma pessoa a quem pudesse dar a outra metade. Para Sheila é tarde demais. Ela não recebeu muito mais do que quimioterapia no último ano de vida. Amanhã tenho um encontro. Convidei Chris Batt para jantar. Chris é o bibliotecário-chefe da nova biblioteca aqui de Croydon. Sou um dos seus frequentadores mais assíduos. Parece-me ser uma grande honra para este bairro contar com uma biblioteca moderna, com escadas rolantes ligando os andares. Chris é um homem muito activo. Não creio que ele tivesse acendido aquele isqueiro no bar do Maravu. Também não teria sentido nojo ao ver todos aqueles sapos. Resolvi perguntar a Chris se ele acha que o prólogo de um livro deve ser escrito antes ou depois de se escrever o livro. Minha teoria é que o prólogo deve ser escrito no fim de todo o processo. Isso estaria em consonância com outra coisa em que tenho pensado, sobretudo depois de ler a carta de Frank. Transcorreriam centenas de milhares de anos desde o momento em que os primeiros anfíbios saíram da água até aquele em que um ser vivo deste planeta fosse capaz de descrever o que aconteceu então. Hoje por fim podemos escrever o prólogo da história da humanidade, isto é, muitíssimo tempo depois de a história, em si, ter acabado. Dessa maneira, a essência das coisas morde o próprio rabo. Talvez isso seja válido para todos os processos de criação, inclusive o das composições musicais. Imagino que a última coisa que se compõe numa sinfonia é o seu compasso inicial. Vou perguntar a Chris o que ele acha disso. Ele tem muito senso de humor, e também acho que é um homem sábio. Duvido que Chris Batt seja capaz de mencionar uma só opereta cuja abertura tenha sido composta antes de a opereta estar terminada em sua versão derradeira e final. Só se tem uma visão global de uma sucessão de factos quando estes deixam de ter utilidade. Quem tiver a pretensão de entender o destino tem de sobreviver a ele. Não sei se Chris Batt entende muito de astronomia, mas vou lhe perguntar o que acha do seguinte breve resumo da história deste nosso Universo: o aplauso à grande explosão só chegou quinze bilhões de anos depois de a explosão ocorrer.

Querida Vera,
já se passaram algumas semanas desde que nos vimos, e levando em conta o que aconteceu na última noite, talvez você ache que já é hora de saber algo de mim. O que acontece é que tive de esperar todos os fios estarem atados. Como sabe, fiquei em Salamanca depois do congresso porque tinha certeza, certeza total, de que eram eles que eu tinha visto debaixo da ponte que cruza o Tormes. Você achava que eu estava brincando, pensava que eu estava inventando histórias para entretê-la antes de voltarmos ao hotel. Mas foram Ana e José que eu vi, e não podia deixar a cidade sem reservar um ou dois dias para tentar encontrá-los de novo. Já na manhã seguinte topei com eles na plaza Mayor, mas não vou adiantar os acontecimentos: calculei expor tudo a você na ordem cronológica.
Encontrei José cerca de dez dias depois no Museu do Prado, em Madrid, e era como se ele estivesse me procurando pelas salas enormes. No dia seguinte, quer dizer, nessa mesma manhã, voltamos a nos encontrar. Eu estava sentado no Parque del Retiro repassando mentalmente tudo o que ele tinha me contado, embora ainda faltassem algumas peças do quebra-cabeça, quando ele de repente apareceu diante de mim, como se alguém o tivesse avisado dos meus passeios diários, sentou-se a meu lado e ficámos horas no banco, até que o acompanhei, atravessando o parque, até a estação de Atocha. Justo ao sair correndo para pegar o comboio, ele me deu uma porção de fotos, e, de volta ao hotel, descobri que havia algo escrito no verso de cada uma delas. Era o manifesto, Vera! Eu tinha todo o baralho cabalístico nas mãos. Por causa do que José me contou no Parque del Retiro e, sobretudo, do que me entregou antes de desaparecer tão apressadamente, não posso deixar esta cidade sem antes contar toda a história. São duas horas da tarde, e sei que não vou conseguir dormir muito esta noite. Servem-me o café e algo de comer no quarto, e não tenho outro plano além de mandar esta carta antes de arrumar as malas e ir para Sevilha, sexta de manhã». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT