sábado, 17 de dezembro de 2016

Serena. Ian McEwan. «Quando eu cheguei da escola um dia a minha mãe me disse que ele estava esperando por mim no escritório. Com o meu blazer verde e seu brasão heráldico com lema bordado…»

Cortesia de wikipedia e jdact
«Meu nome é Serena Frome (a pronúncia é Frum) e há quase quarenta anos fui enviada numa missão secreta do Serviço de Segurança britânico. Eu não voltei em segurança. Um ano e meio depois de entrar fui despedida, depois de ter caído em desgraça e acabado com a vida do meu namorado, embora ele certamente tenha tido um pouco a ver com a sua própria queda. Não vou perder muito tempo com a minha infância e a minha adolescência. Sou filha de um bispo anglicano e cresci com uma irmã numa catedral de uma cidadezinha linda no leste da Inglaterra. A minha casa era simpática, lustrosa, organizada, cheia de livros. Os meus pais gostavam bastantinho um do outro e me adoravam, e eu a eles. A minha irmã Lucy e eu tínhamos um ano e meio de diferença e, apesar de nós termos passado a adolescência brigando e gritando uma com a outra, isso não deixou grandes cicatrizes e nós ficamos mais próximas na vida adulta. A fé do nosso pai em Deus era uma coisa acomodada e razoável, não se metia muito na nossa vida e foi apenas o suficiente para ele conseguir subir tranquilamente na hierarquia da Igreja e nos instalar numa confortável casa do período da rainha Anne. A casa dava para um jardim cercado por muralhas de plantas que eram, e ainda são, muito bem conhecidas por quem entende de jardinagem. Então, tudo muito estável, invejável, até idílico. Nós crescemos dentro de um jardim murado, com todos os prazeres e limitações que isso implica. A segunda metade da década de 1960 mitigou o nosso modo de vida mas não acabou com ele. Eu nunca perdi um só dia de aula na escola local a não ser que estivesse doente. No fim da minha adolescência os muros do jardim viram alguma bolinação, como as pessoas diziam na época, umas tentativas com cigarros, álcool e um pouco de erva, discos de rock, cores mais vivas e relações mais quentes de um modo geral. Com dezassete anos eu e as minhas amigas éramos tímida e encantadoramente rebeldes, mas fazíamos a lição de casa, decorávamos e vomitávamos os verbos irregulares, as equações, as motivações de personagens de ficção. Nós gostávamos de nos ver como meninas travessas, mas na verdade éramos bem boazinhas. Aquilo era agradável, aquela empolgação toda que estava no ar em 1969. Era algo inseparável da expectativa de que logo chegaria a hora de sair de casa e ir estudar em outro lugar. Nada de estranho ou terrível aconteceu comigo durante os meus primeiros dezoito anos e é por isso que eu vou saltar esse período. Se dependesse de mim, eu teria escolhido fazer uma faculdadezinha preguiçosa de letras numa universidade provinciana bem ao norte ou a oeste de casa. Eu gostava de ler romances. Eu lia rápido, às vezes dava conta de dois ou três por semana, e fazer isso por três anos teria sido bem a minha cara. Mas naquela época eu era considerada uma aberração, uma menina que por acaso tinha talento para matemática. Eu não tinha interesse no assunto, ele me dava pouco prazer, mas eu gostava de estar por cima, e de chegar no alto sem fazer muita força. Eu sabia as respostas das perguntas antes até de saber como tinha chegado a elas. Enquanto as minhas amigas faziam esforço e calculavam, eu chegava a uma solução através de uma série de passos lépidos que eram em alguma medida visuais e em alguma medida só uma noção do que ficava bem em cada caso. Era difícil explicar como eu sabia o que eu sabia. Obviamente, uma prova de matemática era muito menos difícil que uma de literatura inglesa. E no meu último ano eu fui capitã da equipe de xadrez da escola. Precisa fazer um exercício de imaginação histórica para entender o que representava para uma menina, naquela época, viajar para uma escola da vizinhança e derrubar um pirralhinho condescendente e o seu sorrisinho amarelo do poleiro em que ele se tinha encarapitado. Mas matemática e xadrez, além de hóquei, saias pregueadas e canto coral, eu considerava meramente coisas da escola. Achei que estava na hora de largar essas coisas infantis quando comecei a pensar em me matricular na universidade. Mas não levei a minha mãe em consideração. Ela era a quintessência, ou uma paródia, da esposa de um vigário e depois de um bispo, uma memória formidável para nomes e rostos e para as cismas dos membros da paróquia, um jeito de singrar uma rua da cidade com um lenço Hermès, com modos delicados-mas-firmes com a diarista e o jardineiro. Um charme irrepreensível em qualquer escala social, em qualquer tom. Com que ar de entendedora ela encarava as fumantes inveteradas e enfarruscadas dos conjuntos habitacionais quando elas vinham para o Clube de Mães e Bebés na cripta. Com que entusiasmo ela lia a historinha de véspera de Natal para as crianças dos Barnardo, sentadas aos pés dela na nossa sala de estar. Com que autoridade natural ela pôs o arcebispo de Canterbury à vontade quando ele passou uma vez para tomar um chá e comer uns bolinhos depois de abençoar a fonte restaurada da catedral. Lucy e eu fomos expulsas para o andar de cima enquanto durou a visita dele. Tudo isso, e essa é que é a parte difícil, combinado com uma total devoção e subordinação à causa do meu pai. Ela era a sua propagandista, a sua criada, a pessoa que facilitava a vida dele a todo momento. Das meias guardadas em caixinhas e da sobrepeliz passada a ferro e pendurada no guarda-roupa ao seu escritório espanado e ao profundíssimo silêncio dos sábados em casa, quando ele estava escrevendo o sermão. A única coisa que ela exigia em troca, palpite meu, é claro, era que ele a amasse ou que, pelo menos, nunca a deixasse. Mas o que eu não tinha entendido sobre a minha mãe era que enterrada bem fundo, por baixo desse exterior convencional, estava a sementinha resistente do feminismo. Eu tenho certeza de que essa palavra nunca saiu da sua boca, mas não fazia diferença. As certezas dela me assustavam. Ela disse que era meu dever como mulher ir estudar matemática em Cambridge. Como mulher? Naquele tempo, ou no nosso meio social, ninguém, jamais, falava com você nesses termos. Mulher nenhuma fazia algo como mulher. Ela me disse que não permitiria que eu desperdiçasse o meu talento. Eu iria brilhar e fazer algo extraordinário. Eu tinha de ter uma carreira de verdade na ciência ou na engenharia ou na economia. Ela se deu o direito de usar o clichê do mundo aos meus pés. Era injusto com a minha irmã o facto de eu ser inteligente e linda e de ela não ser nenhuma dessas coisas. Seria uma injustiça ainda maior se eu deixasse de mirar alto. Eu não entendi muito bem a lógica por trás disso, mas não abri a boca. A minha mãe me disse que jamais me perdoaria e jamais se perdoaria se eu fosse estudar letras e virasse apenas uma versão levemente mais educada da dona de casa que ela era. Eu estava correndo o risco de jogar a minha vida fora. Foram as palavras dela, e elas representavam uma confissão. Foi a única vez que ela manifestou ou confessou estar insatisfeita com o seu destino. Aí ela cooptou o meu pai, o Bispo era como a minha irmã e eu o chamávamos. Quando eu cheguei da escola um dia a minha mãe me disse que ele estava esperando por mim no escritório. Com o meu blazer verde e seu brasão heráldico com lema bordado, Nisi Dominus Vanum, Sem o Senhor Tudo é em Vão, eu me arrastei mal-humorada até à poltrona de couro com jeito de clube de senhores enquanto ele presidia a sessão sentado à sua mesa, remexendo em alguns papéis e cantarolando baixinho enquanto punha as ideias em ordem. Eu achei que ele estava ensaiando para mim a parábola dos talentos, mas ele adoptou uma linha surpreendentemente prática. Ele tinha feito umas sondagens». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2. 
Cortesia da CdasLetras/JDACT