quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A Traição Veneziana. Steve Berry. «Nada disso parecia animador. Ele precisava sair. O fedor começou a lhe revirar o estômago. A máquina parou de perambular e ele ouviu um novo som»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O cheiro fez Cotton Malone retomar a consciência. Pungente, acre, com um toque de enxofre. E mais alguma coisa. Doce e enjoativa. Como a morte. Abriu os olhos. Deitado de bruços no chão, braços estendidos, palmas sobre a madeira que, logo notou, estava grudenta. O que aconteceu? Comparecera ao encontro de Abril da Sociedade Dinamarquesa de Livreiros Antiquários a algumas quadras a oeste de sua livraria, perto da animação do Tivoli. Gostava das reuniões mensais e esta não tinha sido excepção. Alguns drinques, amigos e muita conversa sobre livros. No dia seguinte, concordara em encontrar Cassiopeia Vitt. Sua ligação no dia anterior, para combinar o encontro, o surpreendera. Não recebia notícias dela desde o Natal, que passara em Copenhague. Ele estava voltando para casa de bicicleta, apreciando a noite agradável de Primavera, quando decidira verificar o local de encontro pouco usual que ela havia escolhido, o museu de Cultura Grecoromana, preparar-se era um hábito de sua antiga profissão. Cassiopeia raramente fazia algo por impulso, então, um pouco de cuidado não era má ideia. Encontrara o local, que ficava de frente para o canal Frederiksholms, e notou uma porta entreaberta para o interior totalmente escuro do prédio, uma porta que normalmente deveria estar trancada e com alarme. Parou a bicicleta. O mínimo que poderia fazer era fechar a porta e ligar para a polícia quando chegasse em casa. Mas a última coisa de que se lembrava era de ter segurado a maçaneta. Agora estava dentro do museu. Na iluminação ambiente que era filtrada pelas duas janelas de vidro laminado, viu um espaço decorado no estilo típico dinamarquês: uma mistura reluzente de aço, madeira, vidro e alumínio. O lado direito de sua cabeça latejou, ele passou a mão num galo recente. Balançou a cabeça para desanuviar o cérebro e se levantou. Visitara o museu uma vez e não se impressionara com o acervo de artefactos gregos e romanos. A penas uma das cem ou mais colecções particulares de Copenhague, com temas tão variados quanto a população da cidade. Apoiou-se contra uma vitrine de vidro. As pontas dos dedos mais uma vez ficaram grudentas e malcheirosas, com o mesmo odor enjoativo.
Notou que a camisa e a calça estavam húmidas, assim como o cabelo, o rosto e os braços. O que quer que revestisse o interior do museu, cobria-o também. Cambaleou na direcção da entrada e tentou abrir a porta. Trancada. Fechadura de cilindro duplo. Seria necessária uma chave para abrir a porta por dentro. Olhou de novo para o interior. O tecto tinha vertiginosos 9 metros. Uma escadaria de madeira e cromo levava ao segundo andar, que se, dissolvia em mais escuridão, o piso térreo estendendo-se abaixo. Encontrou um interruptor. Nada. Cambaleou até um telefone sobre a mesa. Sem sinal. Um barulho interrompeu o silêncio. Cliques e chiados, como os de engrenagens operando. Vindos do segundo andar. O treinamento para agente do Departamento de Justiça o prevenia a manter o silêncio, mas também o impulsionava a investigar. Então, subiu a escada sem fazer barulho. O corrimão cromado estava húmido, assim como todos os espelhos laminados da escada. Quinze degraus acima, mais vitrines de vidro e metal cromado espalhavam-se pelo piso de madeira de lei. Relevos em mármore e estátuas de bronze incompletas em pedestais assomavam como fantasmas. Um movimento entrou em seu campo de visão a 5 metros de onde estava. Um objecto rolando pelo chão. Talvez 60 centímetros de largura, com as laterais arredondadas, de cor apagada, junto ao chão, como os cortadores de grama robóticos que vira num anúncio. Quando se deparava com uma vitrine ou estátua, parava, recuava, depois disparava em outra direcção. Um bocal saía da parte superior e, a intervalos de alguns segundos, disparava um esguicho de aerossol. Aproximou-se. Todo movimento parou. Como se a coisa sentisse sua presença. O bocal virou de frente para ele. Uma nuvem de gotículas encharcou sua calça. O que era aquilo? A máquina pareceu perder o interesse e correu para dentro da escuridão, expelindo mais névoa perfumada pelo caminho. Ele olhou para o térreo por cima do corrimão e avistou mais uma geringonça estacionada ao lado de uma vitrine. Nada disso parecia animador. Ele precisava sair. O fedor começou a lhe revirar o estômago. A máquina parou de perambular e ele ouviu um novo som. Dois anos atrás, antes do divórcio, da aposentadoria do governo e da mudança abrupta para Copenhague, quando morava em Atlanta, gastara algumas centenas de dólares numa grelha de aço inoxidável. Vinha com um botão vermelho que, quando accionado, lançava uma chama de gás. Lembrava-se do som que a ignição fazia cada vez que o botão era bombeado. O mesmo clique que ele acabara de ouvir naquele instante. Faíscas estouraram. O chão ganhou vida com a explosão, primeiro amarelo vibrante, depois laranja queimado, finalmente assentando no azul pálido à medida que as chamas eram expelidas, consumindo a madeira do piso. Ao mesmo tempo, labaredas subiram pelas paredes com um estrondo». In Steve Berry, A Traição Veneziana, 2009, Publicações dom Quixote, Livros d’Hoje, 2013, ISBN 978-972-203-860-7.

Cortesia dom Quixote/JDACT