sábado, 3 de dezembro de 2016

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «De curtas e compridas tem-nos chamado de tudo. O médico escreveu no bloco: cab…, curtas, compridas, riscou um traço por baixo como se preparasse uma soma e acrescentou em maiúsculas Car… A enfermeira…»

jdact e wikipedia

«(…) Adiante, perto da 8.a, dois sujeitos de bata branca erguiam o capot de um Toyota para lhe examinar o funcionamento das vísceras orientais. Estes amarelos sacanas começaram pelas gravatas ambulantes, já nos colonizam de rádios e automóveis e qualquer dia fazem da gente os kamikazes de Pearl Harbour futuras; marralhos para dar com os cor… nos Jerónimos no Verão, a dizer banzai, quando casamentos e baptizados se sucedem em ritmo trepidante de metralhadora mística. A doente (quem entre aqui para dar pastilhas, tomar pastilhas ou visitar nazarenamente as vítimas das pastilhas é doente, sentenciou o psiquiatra no interior de si mesmo) apontou-lhe ao nariz as órbitas enevoadas de comprimidos e articulou numa determinação tenaz: seu cab… A dona Maria II encolheu os ombros a fim de bolear as arestas do insulto: está nisto desde que veio. Se assistisse à cena que ela armou para aí com a família o senhor doutor até se benzia. De curtas e compridas tem-nos chamado de tudo. O médico escreveu no bloco: cab…, curtas, compridas, riscou um traço por baixo como se preparasse uma soma e acrescentou em maiúsculas Car… A enfermeira, que lhe espreitava sobre o ombro, recuou um passo: educação católica à prova de bala, supôs ele medindo-a. Educação católica à prova de bala e virgem por tradição familiar: a mãe devia estar rezando a Santa Maria Goretti enquanto a fazia. A Charlotte Brontë a cambalear à beira do KO químico voltou para a janela uma unha onde o verniz estalava: alguma vez viu o sol lá fora, seu cab…? O psiquiatra gatafunhou Car…  + Cab… = Grande Fo…, rasgou a página e entregou-a à enfermeira: percebe?, perguntou ele. Aprendi isto com a minha primeira mestra de lavores, diga-se à puridade e de passagem que o melhor clitóris de Lisboa. A mulher empertigou-se de indignação respeitosa: o senhor doutor anda muito bem disposto mas eu tenho outros médicos para atender. O homem lançou-lhe, num gesto largo, a bênção urbi et orbi que seguira uma vez pela televisão: ide em paz, soletrou ele com sotaque italiano. E não percais a minha mensagem papal sem a dar a ler aos bispos meus dilectos irmãos. Sursum corda e Deo gratias ou vice-versa. Fechou cuidadosamente a porta atrás dela e voltou a sentar-se à secretária. A Charlotte Brontë mediu-o de pálpebra crítica: ainda não decidi se você é um cab… simpático ou antipático mas pelo sim pelo não co… da mãe. Co… da mãe, meditou ele, que exclamação adequada. Moveu-a dentro da boca com a língua como um caramelo, sentiu-lhe a cor e o gosto morno, recuou no tempo até a encontrar a lápis nos sanitários do liceu entre desenhos explicativos, convites e quadras e a recordação enjoada dos cigarros clandestinos comprados avulso na Papelaria Académica a uma deusa grega que varria o balcão com o excesso dos seios, demorando nele pupilas vazias de estátua. Uma senhora magrinha com ar subalterno apanhava malhas num canto sombrio anunciada por letreiro a escantilhão na montra (Malhas Com Perfeissão e Rapidês) tal como os cartazes pregados às grades do Jardim Zoológico avisam os nomes em latim dos animais. Cheirava persistentemente a lápis viarco e a humidade e as damas das redondezas com as compras da praça embrulhadas em papel de jornal vinham queixar-se às mamas helénicas, em murmúrios desolados, das suas misérias conjugais povoadas de manicuras perversas e de francesas de cabaré que lhes seduziam os maridos ao dobrarem em quatro, ao ritmo afrodisíaco da Valsa da Meia-Noite, a nudez experiente dos quadris. O negro que se masturbava no pátio iniciou para edificação dos serventes contorções orgásticas desordenadas de mangueira à solta. L’arroseur arrosé. Incansável, a Charlotte Brontë voltou à carga: oiça lá seu artolas, conhece a dona disto? E depois de uma pausa destinada a deixar alastrar no médico o pânico escolar da ignorância assentou uma palmada proprietária na barriga: sou eu. Os olhos que desdenhavam o psiquiatra raiaram-se de súbito de tracinhos métricos de duplo-decímetro: não sei se o despeço ou se o nomeio director: é consoante. É consoante? É consoante a opinião do meu marido domador de leões de bronze marquês de Pombal Sebastião Melo». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT