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A
ilha dos Guanacos
«(…)
Abingdon só valia como posto de salvamento de náufragos enquanto restavam
canaleses que podiam ser trazidos para aqui. Mas estes pobres diabos que sobram
não distinguiriam um náufrago de um mexilhão. O Almirantado não vai dar nem um
centavo para este assunto. Como sabia aquilo? Era difícil dizer. Talvez o tivesse
lido num diário bombista, daqueles que costumavam chegar à sua cabina. Os
anarquistas tinham gozo em propalar essas histórias. Talvez o capitão estivesse
a interpretar a seu bel-prazer a leitura de algum derrotista. Ou certamente
tudo era produto da sua grande ignorância que o levava a confundir o arcebispo
com o Almirantado Britânico. Levantou-se com esforço e caminhou debaixo da neve
alheio à tormenta que se tinha desencadeado, a viúva agarrou-se à garrafa.
Nunca tinha considerado o assunto sob esse ponto de vista; que houvesse uns
quantos que tomassem Abingdon como um mero refúgio de náufragos. Mas a ideia
parecia tão extravagante que a expulsou da cabeça. Fez um brinde ao arcebispo
da América do Sul. Pouco mais tarde flutuava no seu sonho do costume: o arcebispo
desembarcava durante um entardecer inesquecível. As ovelhas pastavam junto da margem,
o chão estava resplandecente com as margaridas e os bandos de papagaios
chilreavam no bosque de magnólias, enquanto os seus sobrinhos de Londres
brincavam à bola.
Havia
uma cordilheira que terminava na costa e o Atlântico penetrava até ao coração da
montanha. Estes braços de mar eram bons refúgios para passar os temporais ou para
carregar água doce de alguma cascata. Da coberta avistavam-se perfeitamente os caranguejos
que caminhavam no fundo. As margens estavam povoadas de mirtos e o vento trazia
com frequência o estalar das geleiras. Noutro tempo estes lugares tinham sido os
melhores sustentáculos das goletas que andavam à caça dos lobos-marinhos,
quando disparavam de uma velha lancha a vapor em busca de caçadores furtivos. Mas
quase não havia lobos e os caçadores estavam na maior das misérias. No entanto os
seus perseguidores não lhes davam quartel. Os caçadores de lobos, desesperados por
esse assédio, resolveram culpar o Governo pelo assassínio de um canoeiro. Segundo
eles, dois naturalistas que viajavam naquela lancha tinham cozinhado vivo um canalês
para lhe limpar o esqueleto.
Que disparate,
senhor, protestou um dos acusados enquanto esfregava uma escova de dentes sobre
um crânio recoberto de barro. Era o professor Brainbridge Montagu E. C., autor de
quinze monografias sobre a dentição do índio americano. O cronista olhava para ele
deslumbrado. O professor Montagu escovava a boca do crânio. Este desgraçado vivia
aos gritos. Olhe o tamanho do abcesso, explicou ao assinalar um oco gigantesco na
mandíbula. Acrescentou: é pena que estes ossos caiam nas mãos de não importa quem.
Olhe para este outro, falta-lhe uma rodela na cabeça. Deram-lhe com um machete.
Mas ainda há-de aparecer um tarado a publicar um trabalho demonstrando que lhe
fizeram uma trepanação. Não parava de resmungar enquanto ia fazendo medições. Canoeiros
fervidos..., já não sabem que merdas hão-de inventar. Traga uns quantos litros de
genebra e vai conseguir um cemitério completo. Procurou freneticamente um livro,
uma bibliografia onde aparecia o seu nome. Eu descobri o esqueleto do primeiro conde
de Warminster. Acha que preciso de andar a fazer coisas estranhas?» In
Eduardo Belgrano Rawson, Para lá da Terra do Fogo, 1991, 1999, Quetzal
Editores, 2009, Lisboa, ISBN 978-972-564-784-4.
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