segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Para lá da Terra do Fogo. Eduardo Belgrano Rawson. «Havia uma cordilheira que terminava na costa e o Atlântico penetrava até ao coração da montanha. Estes braços de mar eram bons refúgios para passar os temporais ou para carregar água doce de alguma cascata»

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A ilha dos Guanacos
«(…) Abingdon só valia como posto de salvamento de náufragos enquanto restavam canaleses que podiam ser trazidos para aqui. Mas estes pobres diabos que sobram não distinguiriam um náufrago de um mexilhão. O Almirantado não vai dar nem um centavo para este assunto. Como sabia aquilo? Era difícil dizer. Talvez o tivesse lido num diário bombista, daqueles que costumavam chegar à sua cabina. Os anarquistas tinham gozo em propalar essas histórias. Talvez o capitão estivesse a interpretar a seu bel-prazer a leitura de algum derrotista. Ou certamente tudo era produto da sua grande ignorância que o levava a confundir o arcebispo com o Almirantado Britânico. Levantou-se com esforço e caminhou debaixo da neve alheio à tormenta que se tinha desencadeado, a viúva agarrou-se à garrafa. Nunca tinha considerado o assunto sob esse ponto de vista; que houvesse uns quantos que tomassem Abingdon como um mero refúgio de náufragos. Mas a ideia parecia tão extravagante que a expulsou da cabeça. Fez um brinde ao arcebispo da América do Sul. Pouco mais tarde flutuava no seu sonho do costume: o arcebispo desembarcava durante um entardecer inesquecível. As ovelhas pastavam junto da margem, o chão estava resplandecente com as margaridas e os bandos de papagaios chilreavam no bosque de magnólias, enquanto os seus sobrinhos de Londres brincavam à bola.
Havia uma cordilheira que terminava na costa e o Atlântico penetrava até ao coração da montanha. Estes braços de mar eram bons refúgios para passar os temporais ou para carregar água doce de alguma cascata. Da coberta avistavam-se perfeitamente os caranguejos que caminhavam no fundo. As margens estavam povoadas de mirtos e o vento trazia com frequência o estalar das geleiras. Noutro tempo estes lugares tinham sido os melhores sustentáculos das goletas que andavam à caça dos lobos-marinhos, quando disparavam de uma velha lancha a vapor em busca de caçadores furtivos. Mas quase não havia lobos e os caçadores estavam na maior das misérias. No entanto os seus perseguidores não lhes davam quartel. Os caçadores de lobos, desesperados por esse assédio, resolveram culpar o Governo pelo assassínio de um canoeiro. Segundo eles, dois naturalistas que viajavam naquela lancha tinham cozinhado vivo um canalês para lhe limpar o esqueleto.
Que disparate, senhor, protestou um dos acusados enquanto esfregava uma escova de dentes sobre um crânio recoberto de barro. Era o professor Brainbridge Montagu E. C., autor de quinze monografias sobre a dentição do índio americano. O cronista olhava para ele deslumbrado. O professor Montagu escovava a boca do crânio. Este desgraçado vivia aos gritos. Olhe o tamanho do abcesso, explicou ao assinalar um oco gigantesco na mandíbula. Acrescentou: é pena que estes ossos caiam nas mãos de não importa quem. Olhe para este outro, falta-lhe uma rodela na cabeça. Deram-lhe com um machete. Mas ainda há-de aparecer um tarado a publicar um trabalho demonstrando que lhe fizeram uma trepanação. Não parava de resmungar enquanto ia fazendo medições. Canoeiros fervidos..., já não sabem que merdas hão-de inventar. Traga uns quantos litros de genebra e vai conseguir um cemitério completo. Procurou freneticamente um livro, uma bibliografia onde aparecia o seu nome. Eu descobri o esqueleto do primeiro conde de Warminster. Acha que preciso de andar a fazer coisas estranhas?» In Eduardo Belgrano Rawson, Para lá da Terra do Fogo, 1991, 1999, Quetzal Editores, 2009, Lisboa, ISBN 978-972-564-784-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT