sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «Classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, repetiam os degraus à medida que os subia e a enfermaria se aproximava dele tal um urinol de estação de um comboio»

jdact e wikipedia

«O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante: a quotazinha da Sociedade, senhor doutor. Pu… que pariu os psiquiatras organizados em esquadra de polícia, pensava sempre ao procurar os cem escudos na complicação da carteira, pu… que pariu o Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores pomposos do sofrimento, dos chonés da única sórdida forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia defendidos pelo Código Penal dos tratados, pu… que pariu a Arte Da Catalogação Da Angústia, pu… que me pariu a mim, rematava ele ao embolsar o rectângulo impresso, que colaboro, pagando, com isto, em lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos e nas gavetas das secretárias dos médicos para fazer explodir, num cogumelo atómico triunfante, cento e vinte e cinco anos de idiotia pinamaniquesca. O olhar intensamente azul do porteiro-cobrador, que assistia sem entender a uma maré-baixa de revolta que o transcendia, embrulhava-o num halo de anjo medieval apaziguante: um dos projectos secretos do médico consistia em saltar a pés juntos para dentro dos quadros de Cimabue e dissolver-se nos ocres desbotados de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica e pelas pagelas da Sãozinha: lançar mergulhos rasantes de perdiz, mascarado de serafim nédio, pelos joelhos de virgens estranhamente idênticas às mulheres de Delvaux, manequins de espanto nu em gares que ninguém habita. Um resto agonizante de fúria veio girar-lhe ao ralo da boca: senhor Morgado, pela saúde dos seus e meus tomates não me lixe mais com o car… das quotas durante um ano e diga à Sociedade de Neurologia e Psiquiatria e amanuenses do cerebelo afins que metam o meu dinheiro enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos e tenho dito ámen. O porteiro-cobrador escutava-o respeitosamente (este gajo deve ter sido na tropa o pide favorito do sargento, descobriu o médico) reinventando as leis de Mendel à medida do seu intelecto de dois quartos com serventia de cozinha: topa-se logo que o senhor doutor é filho do senhor doutor: uma ocasião o paizinho amandou o fiscal fora do laboratório pelas orelhas. De azimute voltado para o livro do ponto e um seio de Delvaux a esfumar-se no canto da ideia, o psiquiatra apercebeu-se de súbito da admiração que as proezas bélicas do progenitor haviam disseminado, por aqui e por ali, na saudade de certas barrigas grisalhas. Rapazes, chamava-lhes o pai. Quando vinte anos atrás o irmão e ele se iniciaram no hóquei do Futebol Benfica, o treinador, que partilhara com o pai Aljubarrotas áureas de pauladas no toutiço, retirou o apito da boca para os avisar com gravidade: espero que saiam ao João, que quando tocava a Santos era lixado para a porrada. Em 35, no rinque da Gomes Pereira, foram três da Académica da Amadora para São José. E acrescentou baixinho com a doçura de uma recordação grata: fractura de crânio, no tom de voz em que se revelam segredos íntimos de paixão adolescente, conservada na gaveta da memória que se dedica às inutilidades de pacotilha que dão sentido a um passado. Pertenço irremediavelmente à classe dos mansos refugiados em tábuas, reflectiu ele ao assinar o nome no livro que o contínuo lhe estendia, velho calvo habitado pela paixão esquisita da apicultura, escafandrista de rede encalhado num recife de insectos, à classe dos mansos perdidos refugiados em tábuas a sonharem com o curro do útero da mãe, único espaço possível onde ancorar as taquicárdias da angústia. E sentiu-se como expulso e longe de uma casa cujo endereço esquecera, porque conversar com a surdez da mãe afigurava-se-lhe mais inútil do que socar uma porta cerrada para um quarto vazio, apesar dos esforços do sonotone através do qual ela mantinha com o mundo exterior um contacto distorcido e confuso feito de ecos de gritos e de enormes gestos explicativos de palhaço pobre. Para entrar em comunicação com esse ovo de silêncio o filho iniciava uma espécie de batuque zulu ritmado de guinchos, saltava na carpete a deformar-se em caretas de borracha, batia palmas, grunhia, acabava por afundar-se extenuado num sofá gordo como um diabético avesso à dieta, e era então que movida por um tropismo vegetal de girassol a mãe erguia o queixo inocente do tricot e perguntava: hã?, de agulhas suspensas sobre o novelo à laia de um chinês parando os pauzinhos diante do almoço interrompido. Classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, repetiam os degraus à medida que os subia e a enfermaria se aproximava dele tal um urinol de estação de um comboio em marcha, chefiada por uma vaca sagrada que a fim de descompor as subordinadas retirava a dentadura postiça da boca, como quem arregaça as mangas, para aumentar a eficácia dos insultos. A imagem das filhas, visitadas aos domingos numa quase furtividade de licença de caserna, atravessou-lhe obliquamente a cabeça num desses feixes de luz poeirenta que os postigos de sótão transformam numa espécie triste de alegria. Costumava levá-las ao circo na tentativa de lhes comunicar a sua admiração pelas contorcionistas, entrelaçadas em si próprias como iniciais em ângulo de guardanapo e detentoras da beleza impalpável comum aos hálitos de gaze que anunciam nos aeroportos a partida dos aviões e às meninas de saias de folhos e botas brancas a desenharem elipses às arrecuas no rinque de patinagem do Jardim Zoológico, e desiludia-o como uma traição o estranho interesse delas pelas damas equívocas, de cabelos loiros com raízes grisalhas, que amestravam cães melancolicamente obedientes e uniformemente horrorosos, ou pelo rapazinho de seis anos a rasgar listas telefónicas no riso fácil dos guarda-costas em botão, futuro Mozart do cassetete. Os crânios daqueles dois seres minúsculos que usavam o seu apelido e lhe prolongavam a arquitectura das feições surgiam-lhe tão misteriosamente opacos como os problemas de torneiras da escola, e espantava-o que sob cabelos que possuíam o mesmo odor dos seus grelassem ideias diversas das que penosamente armazenara em anos e anos de hesitações e dúvidas». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT