jdact
e wikipedia
«O
Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância
acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada,
pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos
de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como
se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter
de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no
sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante: a quotazinha da
Sociedade, senhor doutor. Pu… que pariu os psiquiatras organizados em esquadra
de polícia, pensava sempre ao procurar os cem escudos na complicação da
carteira, pu… que pariu o Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores
pomposos do sofrimento, dos chonés da única sórdida forma de maluquice que
consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia defendidos pelo
Código Penal dos tratados, pu… que pariu a Arte Da Catalogação Da Angústia, pu…
que me pariu a mim, rematava ele ao embolsar o rectângulo impresso, que
colaboro, pagando, com isto, em lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos
e nas gavetas das secretárias dos médicos para fazer explodir, num cogumelo
atómico triunfante, cento e vinte e cinco anos de idiotia pinamaniquesca. O
olhar intensamente azul do porteiro-cobrador, que assistia sem entender a uma
maré-baixa de revolta que o transcendia, embrulhava-o num halo de anjo medieval
apaziguante: um dos projectos secretos do médico consistia em saltar a pés
juntos para dentro dos quadros de Cimabue e dissolver-se nos ocres desbotados
de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica e pelas pagelas da
Sãozinha: lançar mergulhos rasantes de perdiz, mascarado de serafim nédio,
pelos joelhos de virgens estranhamente idênticas às mulheres de Delvaux,
manequins de espanto nu em gares que ninguém habita. Um resto agonizante de
fúria veio girar-lhe ao ralo da boca: senhor Morgado, pela saúde dos seus e
meus tomates não me lixe mais com o car… das quotas durante um ano e diga à
Sociedade de Neurologia e Psiquiatria e amanuenses do cerebelo afins que metam
o meu dinheiro enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos
e tenho dito ámen. O porteiro-cobrador escutava-o respeitosamente (este gajo
deve ter sido na tropa o pide favorito do sargento, descobriu o médico)
reinventando as leis de Mendel à medida do seu intelecto de dois quartos com
serventia de cozinha: topa-se logo que o senhor doutor é filho do senhor
doutor: uma ocasião o paizinho amandou o fiscal fora do laboratório pelas
orelhas. De azimute voltado para o livro do ponto e um seio de Delvaux a
esfumar-se no canto da ideia, o psiquiatra apercebeu-se de súbito da admiração
que as proezas bélicas do progenitor haviam disseminado, por aqui e por ali, na
saudade de certas barrigas grisalhas. Rapazes, chamava-lhes o pai. Quando vinte
anos atrás o irmão e ele se iniciaram no hóquei do Futebol Benfica, o
treinador, que partilhara com o pai Aljubarrotas áureas de pauladas no toutiço,
retirou o apito da boca para os avisar com gravidade: espero que saiam ao João,
que quando tocava a Santos era lixado para a porrada. Em 35, no rinque da Gomes
Pereira, foram três da Académica da Amadora para São José. E acrescentou
baixinho com a doçura de uma recordação grata: fractura de crânio, no tom de
voz em que se revelam segredos íntimos de paixão adolescente, conservada na
gaveta da memória que se dedica às inutilidades de pacotilha que dão sentido a
um passado. Pertenço irremediavelmente à classe dos mansos refugiados em
tábuas, reflectiu ele ao assinar o nome no livro que o contínuo lhe estendia,
velho calvo habitado pela paixão esquisita da apicultura, escafandrista de rede
encalhado num recife de insectos, à classe dos mansos perdidos refugiados em
tábuas a sonharem com o curro do útero da mãe, único espaço possível onde
ancorar as taquicárdias da angústia. E sentiu-se como expulso e longe de uma
casa cujo endereço esquecera, porque conversar com a surdez da mãe
afigurava-se-lhe mais inútil do que socar uma porta cerrada para um quarto
vazio, apesar dos esforços do sonotone através do qual ela mantinha com o mundo
exterior um contacto distorcido e confuso feito de ecos de gritos e de enormes
gestos explicativos de palhaço pobre. Para entrar em comunicação com esse ovo
de silêncio o filho iniciava uma espécie de batuque zulu ritmado de guinchos,
saltava na carpete a deformar-se em caretas de borracha, batia palmas, grunhia,
acabava por afundar-se extenuado num sofá gordo como um diabético avesso à
dieta, e era então que movida por um tropismo vegetal de girassol a mãe erguia
o queixo inocente do tricot e perguntava: hã?, de agulhas suspensas sobre o
novelo à laia de um chinês parando os pauzinhos diante do almoço interrompido. Classe
dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos,
repetiam os degraus à medida que os subia e a enfermaria se aproximava dele tal
um urinol de estação de um comboio em marcha, chefiada por uma vaca sagrada que
a fim de descompor as subordinadas retirava a dentadura postiça da boca, como
quem arregaça as mangas, para aumentar a eficácia dos insultos. A imagem das
filhas, visitadas aos domingos numa quase furtividade de licença de caserna,
atravessou-lhe obliquamente a cabeça num desses feixes de luz poeirenta que os
postigos de sótão transformam numa espécie triste de alegria. Costumava
levá-las ao circo na tentativa de lhes comunicar a sua admiração pelas
contorcionistas, entrelaçadas em si próprias como iniciais em ângulo de
guardanapo e detentoras da beleza impalpável comum aos hálitos de gaze que
anunciam nos aeroportos a partida dos aviões e às meninas de saias de folhos e
botas brancas a desenharem elipses às arrecuas no rinque de patinagem do Jardim
Zoológico, e desiludia-o como uma traição o estranho interesse delas pelas
damas equívocas, de cabelos loiros com raízes grisalhas, que amestravam cães
melancolicamente obedientes e uniformemente horrorosos, ou pelo rapazinho de
seis anos a rasgar listas telefónicas no riso fácil dos guarda-costas em botão,
futuro Mozart do cassetete. Os crânios daqueles dois seres minúsculos que
usavam o seu apelido e lhe prolongavam a arquitectura das feições surgiam-lhe
tão misteriosamente opacos como os problemas de torneiras da escola, e
espantava-o que sob cabelos que possuíam o mesmo odor dos seus grelassem ideias
diversas das que penosamente armazenara em anos e anos de hesitações e dúvidas».
In
António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom
Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT