quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

O Segredo da Casa de Riverton. Kate Morton. «Eu estava curiosa, uma sensação que não experimentava havia muito tempo. Não há muita coisa que desperte a curiosidade quando se tem noventa e oito anos, mas eu queria conhecer…»

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«Em Novembro eu tive um pesadelo. Era 1924 e eu estava outra vez em Riverton. Todas as portas escancaradas, seda ondeando na brisa do Verão. Havia uma orquestra no alto da colina, sob o velho bordo, violinos tocando preguiçosamente no calor. Risos e cristais ressoavam no ar, e o céu tinha aquele tom de azul que todos pensávamos que a guerra destruíra para sempre. Um dos lacaios, elegante em preto e branco, despejava champanhe sobre uma torre de taças e todo o mundo aplaudia, deliciando-se com aquele esplêndido desperdício. Eu vi a mim mesma, do jeito que acontece em sonhos, movendo-me no meio dos convidados. Movendo-me lentamente, muito mais lentamente do que é possível na vida real, os outros um borrão de seda e lantejoulas. Eu procurava alguém. Então a cena mudou e eu estava perto da casa de verão, só que não era a casa de verão de Riverton, não podia ser. Não era aquela bela construção nova que Teddy tinha projectado e, sim, uma estrutura velha, com hera subindo pelas paredes, entrando pelas janelas, estrangulando as colunas. Alguém estava chamando-me. Uma mulher, uma voz que eu reconheci, vindo de trás da casa, da beira do lago. Eu desci pela encosta, roçando a mão nos bambus mais altos. Havia uma figura agachada na margem. Era Hannah, com seu vestido de noiva, sujo de lama na frente, a lama grudada nas rosas aplicadas. Ela olhou para mim, o rosto pálido onde emergia da sombra. A voz dela congelou o meu sangue. Chegou tarde demais. Ela apontou para as minhas mãos. Chegou tarde demais. Eu olhei para as minhas mãos, mãos jovens, cobertas da lama escura do rio, e, nelas, o corpo frio e rígido de um perdigueiro morto. Eu sei o que provocou isso, é claro. Foi a carta da cineasta. Eu não recebo muitas cartas hoje em dia: um ou outro cartão-postal de um amigo fiel, em férias; uma carta formal do banco onde tenho uma poupança; um convite para o baptizado de uma criança, cujos pais, fico chocada ao perceber, não são mais crianças. A carta de Ursula tinha chegado numa terça-feira de manhã em meados de Novembro, e Sylvia a trouxera quando veio fazer a minha cama. Ela erguera as sobrancelhas pintadas e sacudira o envelope. Chegou uma carta. Pelo sêlo, parece ser dos Estados Unidos. Seu neto, talvez? A sobrancelha esquerda arqueada, um ponto de interrogação, e a voz um sussurro rouco. Uma coisa terrível, aquela. Simplesmente terrível. Um rapaz tão simpático como ele. Enquanto Sylvia sacudia a cabeça, eu lhe agradeci pela carta. Eu gosto de Sylvia. É uma das poucas pessoas capazes de enxergar além das rugas no meu rosto e ver a jovem de vinte anos que mora lá dentro. Mesmo assim, eu me recusei a ser arrastada a uma conversa sobre Marcus. Pedi que abrisse as cortinas, e ela franziu os lábios um momento antes de passar para outro de seus temas favoritos: o tempo, a possibilidade de haver neve no Natal, a calamidade que isto seria para os residentes que sofriam de artrite. Eu respondia adequadamente, mas minha mente estava no envelope no meu colo, admirando a caligrafia elaborada, os selos estrangeiros, as margens macias que falavam de longas viagens. Olha, por que a senhora não me deixa ler isso, disse Sylvia, dando uma última e esperançosa sacudidela no travesseiro, para não cansar seus olhos? Não. Obrigada. Mas pode-me passar os meus óculos? Depois que ela saiu, prometendo voltar para me ajudar a me vestir depois de terminar a sua ronda, eu tirei a carta do envelope, com as mãos tremendo, como sempre, imaginando se ele finalmente estaria voltando para casa. Mas a carta não era de Marcus. Era de uma jovem que estava fazendo um filme sobre o passado. Ela queria que eu visse as suas locações, para lembrar coisas e lugares de antigamente. Como se eu não tivesse passado uma vida inteira fingindo esquecer. Eu ignorei aquela carta. Dobrei-a cuidadosa e silenciosamente, enfiei-a dentro de um livro que havia muito desistira de ler. E então expeli o ar. Não era a primeira vez que me lembravam o que tinha acontecido em Riverton, com Robbie e as irmãs Hartford. Uma vez eu vi o final de um documentário na televisão, alguma coisa a que Ruth estava assistindo sobre poetas do tempo da guerra. Quando o rosto de Robbie apareceu na tela, seu nome impresso em baixo numa letra despretensiosa, eu fiquei arrepiada. Mas nada aconteceu. Ruth não se mexeu, o narrador prosseguiu, e eu continuei secando a louça. Noutra ocasião, ao ler os jornais, meu olhar foi atraído por um nome familiar, escrito numa chamada no guia de televisão; um programa comemorando setenta anos de filmes ingleses. Eu anotei o horário, com o coração agitado, imaginando se teria coragem de assistir. No fim, caí no sono antes de o programa terminar. Havia muito pouco sobre Emmeline. Umas poucas fotos de publicidade, nenhuma delas retratava a sua verdadeira beleza, e um clipe de um dos seus filmes mudos, The Venus Affair, em que a sua aparência era estranha: faces encovadas; movimentos desconjuntados como uma marionete. Não havia referência aos outros filmes, os que fizeram tanto furor. Suponho que não valham uma menção nestes tempos de promiscuidade e permissividade. Embora eu já houvesse sido confrontada com estas lembranças, a carta de Ursula foi diferente. Era a primeira vez em mais de setenta anos que alguém me associava aos acontecimentos, que alguém tinha lembrado que uma jovem mulher chamada Grace Reeves estivera em Riverton naquele Verão. Isto fez com que, de certa forma, eu me sentisse vulnerável, destacada. Culpada. Não. Eu estava decidida. Aquela carta não seria respondida. E não foi. Mas começou a acontecer uma coisa estranha. Lembranças, há muito guardadas nas profundezas escuras da minha mente, começaram a sair pelas fendas. Imagens surgiam intactas, perfeitas, como se nesse meio-tempo não houvesse transcorrido uma vida inteira, depois das primeiras gotas de chuva, o dilúvio. Conversas inteiras, palavra por palavra, nuance por nuance; cenas completas como em um filme. Eu surpreendi-me a mim mesma. Embora as traças tenham feito buracos nas minhas lembranças recentes, descubro que o passado distante está nítido e claro. Eles aparecem com frequência ultimamente, aqueles fantasmas do passado, e fico surpresa ao ver que não me importo muito com eles. Não tanto quanto pensei que me importaria. Na realidade, os espectros dos quais passei a vida inteira fugindo tornaram-se quase um consolo, algo que recebo com prazer, que aguardo com ansiedade, como um dos seriados que Sylvia está sempre comentando, correndo com o trabalho para poder assistir no salão. Acho que eu tinha esquecido que havia lembranças luminosas no meio das trevas. Quando a segunda carta chegou na semana passada, com a mesma letra rabiscada no mesmo papel macio, eu soube que ia dizer sim, que aceitaria ir examinar as locações. Eu estava curiosa, uma sensação que não experimentava havia muito tempo. Não há muita coisa que desperte a curiosidade quando se tem noventa e oito anos, mas eu queria conhecer essa Ursula Ryan, que está planeando trazer todos eles de volta à vida, que é tão apaixonada pela história deles. Então eu escrevi para ela, mandei Sylvia pôr a carta no correio e marcámos um encontro». In Kate Morton, O Segredo da Casa de Riverton, Editor 11x17, 2014, ISBN: 978-972-0-77503-0. 
Cortesia de Editor 11x17/JDACT