segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Pecados e Seduções. John Updike. «O barulho das chinelas e o perigo que elas representam para as suas andanças, está sempre a tropeçar nos degraus, irritam-no»

JDACT

«Há muito tempo que a sua mulher acorda cedo, às cinco ou às cinco e meia. Pelos ritmos da sua química, por vezes diferentes dos de Owen, Julia desperta cheia de afecto por ele, pelo seu companheiro da viagem imóvel na cama, através de uma noite de sono imperfeito. Ela abraça-o e, sobrepondo-se aos seus protestos de que ainda está a dormir, declara, numa voz suave mas inflexível, o quanto o ama, o quanto está contente com o seu casamento. Sou simplesmente tão feliz contigo! Isto ao fim de vinte e cinco anos de vida em comum. Ele tem setenta anos, ela sessenta e cinco; esta declaração, importante para Julia, insulta-o ligeiramente: como não podia ser? Depois de todas as suas provações e do sofrimento que causaram a outros? Eles conseguiram atravessá-las; aqui estão eles, chegados à outra margem. Julia puxa-o; vira a cabeça dele para lhe conseguir beijar a boca. Mas os lábios de Owen estão inchados e insensíveis com ir sono; no seu estado anestesiado, com os nervos baralhados, aquilo parece uma tentativa para o sufocar, e aquele gesto irrita-o solenemente. Depois de alguns minutos de mais provocações amorosas, em que ele continua teimosamente sem reagir, a proteger a possibilidade de regressar aos seus sonhos, Julia cede e levanta-se da cama. Owen, esticando-se, satisfeito, para o espaço que ela deixou vago, continua a dormir por mais uma hora ou duas.
Certa manhã, durante esta última hora roubada, ele sonha que, numa casa que não conhece (tem o aspecto degradado de um local público, como uma estalagem ou um hospital), vultos graves e sem rosto o conduzem a um quarto onde, numa cama como a deles, duas camas individuais unidas para fazerem uma muito grande, um homem, bastante jovem, a avaliar pela suavidade do seu corpo branco, com as nádegas roliças, está estendido por cima da sua mulher, como se tentasse reanimá-la ou (muito pelo contrário) escondê-la. Quando, sob as ordens silenciosas dos vultos graves que o acompanham, este estranho se afasta, o corpo da mulher de Owen, também nu, fica a descoberto de barriga para cima: o ventre branco e flácido, os seios achatados pela gravidade, o sexo que ele ama e conhece, com a sua rama de pêlos ralos. Ela está morta, suicidou-se. Encontrou a maneira de se libertar do seu sofrimento. Se eu não tivesse interferido na vida dela, ainda estaria viva, pensa Owen. Tem ânsias de a abraçar, de afazer voltar à vida, de sugar o veneno que a sua existência destilou sobre a dela.
A seguir, devagar, com relutância, como alguém que desvia a atenção de um enigma ainda por resolver, Owen acorda, e é claro que ela não está morta; Julia está no andar de baixo, de onde vem um cheiro a café e o ruído de um noticiário matinal: várias vozes bem-humoradas, masculinas e femininas. O trânsito e o tempo; Julia adora as duas coisas e estas contingências crónicas e diárias nunca deixam de lhe interessar, apesar de já não ir para o emprego em Boston há três anos. Owen ouve as chinelas de borracha azul que ela insiste em usar, como se fosse eternamente jovem e estivesse vestida para a praia, a chinelar de um lado para o outro pela cozinha, do frigorífico para o balcão, da mesa do pequeno-almoço até ao lava-loiça, até ao processador do lixo e à máquina de lavar roupa, e a seguir até à sala de jantar, para regar as suas plantas. Ela adora as plantas com o mesmo órgão emocional, talvez, com que adora o boletim meteorológico. O barulho das chinelas e o perigo que elas representam para as suas andanças, está sempre a tropeçar nos degraus, irritam-no; no entanto, ele gosta de ver os seus dedos dos pés à mostra, ligeiramente afastados, como os dos pés das operárias asiáticas, com as pequenas articulações esbranquiçadas pela tensão de segurar as chinelas. Julia é uma morena baixinha com um corpo compacto; ao contrário da sua primeira mulher, ela fica com um belo bronzeado suave. Há dias em que, algo excitado, Owen só consegue voltar a adormecer quando se lembra de uma das mulheres, Alissa ou Vanessa, Karen ou Faye, que partilhavam com ele a povoação de Middle Falls, no Connecticut, nos anos sessenta e setenta. Com a mão a agarrar o membro sonolento, alivia-se como se tivesse uma delas por baixo, ao seu lado ou por cima, ou a segurar o cabelo para trás enquanto inclina o rosto para o centro intumescido de Owen, cujos nervos gritam pelo contacto húmido e expedente; mas hoje não é um desses dias. O sol branco da Primavera, cada vez mais forte, brilha brutalmente por baixo da persiana da janela. O mundo real, um tigre imune aos sonhos de Owen, aguarda. Está na altura de se levantar e de suportar um dia muito parecido com o de ontem, um dia que o seu optimismo animal presume que vai ser o primeiro de uma sequência que se estenderá infinitamente pelo futuro, mas que o seu cérebro, hipertrofiado na espécie Homo sapiens, sabe que é apenas mais um de uma quantidade finita e a diminuir». In John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN 978-972-262-676-7.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT