Problema que ultrapassa, de longe, a questão comum da identidade de
autor, para levantar o problema mais vasto de a considerar como expressão
literária de um ou de outro povo. Isto para não falarmos de um outro problema,
deste dependente e igualmente apaixonante, que será o de saber se as célebres Cartas
são o produto duma rebuscada elaboração artística ou o resultado de um golpe de
génio, o que automaticamente se traduz na questão mais geral da superioridade
da arte ou da superioridade do génio espontâneo. São, como se vê, outros tantos
problemas que fazem do caso presente um tema apaixonante de controvérsia e de
investigação. Sem outra pretensão que não seja a de ajudar o leitor, em apontamento
sucinto, os dados do problema e os argumentos que militam a favor de cada uma
das hipóteses de solução.
Embora não se saiba ainda hoje, se as Cartas foram escritas em
português ou em francês, foi em francês que elas chegaram até nós numa edição
datada de 1669, em que eram apresentadas pelo editor ao leitor nestes termos:
- Consegui, à custa de muitos trabalhos e dificuldades, recuperar uma cópia correcta da tradução de cinco cartas portuguesas que foram escritas a um nobre gentil-homem que servia em Portugal. Todos os que conhecem os sentimentos do coração humano são unânimes ou em louvá-las, ou em procurá-las com tanto empenho que julguei prestar-lhes um bom serviço imprimindo-as. Desconheço em absoluto o nome daquele a quem foram escritas, bem como daquele que as traduziu; mas pareceu-me que não cairia no seu desagrado publicando-as. É difícil que não acabassem por aparecer com erros de impressão que as teriam desfigurado.
Como se vê, de acordo com esta nota, as Cartas teriam tido origem
em Portugal, e em português teriam sido escritas por uma mulher apaixonada a um
fidalgo francês daqueles que por estes reinos peregrinaram aquando das lutas
pela consolidação da recém-restaurada independência de Portugal. Pudicamente se
esconde o nome do destinatário, bem como o do tradutor. Não se esconde, porém,
o nome de quem as escreveu: embora não mencionado como autor, o nome de Mariana
figura no texto escrito na primeira pessoa e do texto resulta também tratar-se de
uma freira residente num convento de Beja.
É claro, e alguns críticos franceses não deixam de insistir neste
aspecto, que pode tratar-se apenas de artifício literário. Parece ter sido moda
no século XVII deixar no anonimato, ou, de qualquer modo, por preconceito ou
pudor, esconder a personalidade dos verdadeiros autores de obras literárias em
que, sem máscara, se apresentam as grandes paixões amorosas. Sem afastar a
priori essa hipótese, verificamos, no entanto, que pouco a pouco, as coisas
se foram esclarecendo e a situação de anonimato do destinatário e do tradutor
foi destruída noutras edições: logo a edição alemã, aparecida em Colónia no
mesmo ano, e, depois, a edição de F. Roger, aparecida em Amesterdão
trinta anos mais tarde, davam indicações mais precisas. O título deixou de ser Cartas
Portugaesas Traduzidas em Francês para passar a Cartas de Amor de Uma Religiosa Portuguesa Escritas ao Cavaleiro de C…
E identificam: O nome daquele a quem
estas Cartas foram escritas
é o Cavaleiro de Chamilly; e o nome daquele que as traduziu é Cuilleraque». In
Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa
de 1669, Europa América, 1974.
Cortesia de P. E-A/José Ruy/ JDACT