terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Alfacinhas. Alfredo Mesquita. «Tanto nos faz que a filarmónica seja a ‘União e Capricho’, que anda toda a noite a tocar ‘quando os amigos do Fontes’ venceram as eleições, como seja a ‘Reciprocidade e Harmonia’, que anda a tocar toda a noite se o triunfo foi todo para a ‘gente do Braamcamp’»


Cortesia de wikipedia

«E aqui para nós, que nenhum rabecão nos ouve, a verdade é que não há nada que chegue a uma filarmónicasinha bem ensaiada, bem fardada, a acertar bem o passo por essas ruas da cidade ou pela estrada fora, a estrada que leva da vila onde ela tenha a sua sede à aldeia que a convidou para lá lhe ir tocar à festa. Rapazes, ela aí vem!
É a dos regeneradores ou é a dos progressistas? Seja qual for, tanto faz ao caso. É a filarmónica! A política pode ter música, mas a música é que não tem política. Euterpe é extrapartidária. Tanto nos faz que a filarmónica seja a União e Capricho, que anda toda a noite a tocar quando os amigos do Fontes venceram as eleições, como seja a Reciprocidade e Harmonia, que anda a tocar toda a noite se o triunfo foi todo para a gente do Braamcamp. Toquem eles na perfeição, que é o que a gente quer.
Não há banda militar que os desbanque, nem na certeza da marcha em alas paralelas, nem no irrepreensível asseio do fardamento, nem no empenho com que foi puxado o brilho aos metais e o lustro às botas, nem no compasso, nem no desempenho.
Reparem vocês para a seriedade daquele trombone; olhem agora o gosto com que o clarinete chupa a sua parte como se fosse a chupá-la de uma cana-de-açucar; vejam-me as bochechas deste cornetim como luzem, e a graça pastoril com que este outro cospe no buraquinho da flauta! O músico da banda regimental toca bem porque é obrigado a tocar bem. Se desafinar, o coronel castiga-o. Toca admiravelmente, porque tem medo da pele. O sócio da filarmónica, não. Quando se chego a dizer dele que toca que é um mimo, só ele, e os vizinhos dele é que sabem quantas noites lhe foi preciso passar em claro para acertar com aquela mazurca ou com aquelas variações, que são o beijinho dos reportórios de arraial, das tardes de domingo no jardim público, das noites de nortada do l.º de Dezembro em frente do Club Patriótico, todo iluminado a lanternas com velas de estearina. Chega a tocar admiravelmente, por brio.
Existe na Outra Banda uma filarmónica que se chama a Incrível Almadense. Bem posto nome! Mas o exclusivo de incrívell que essa se arrogou e que hoje já ninguém lhe contesta, é que não tem razão de ser: porque incríveis são, em boa verdade, todas as filarmónicas de Portugal. Incríveis, por tudo aquilo que nelas há de força de vontade, de obediência ao alamiré, de sentimento do compasso, de pertinácia no ensaio, de alinação e variado reportório. À frente da filarmónica, quando ela passa em alas, de cabeça branca vincada, cabeça alta, lira de oiro no boné de pala, pimpante e reluzente, só deixa o preconceito que corra a garotada expansiva, pulando de contente.
Mas atrás da filarmónica todos nós corremos, e vamos para onde ela for, sob o céu azul e o dardejante sol, entre explosões de bombas, risadas de foguetes, estoiros do morteiros, para a romaria e para o facto histórico, para a procissão e para os toiros, para o bodo e para a representação nacional, para o baile campestre e para a reivindicação. E isto hoje, ontem, amanhã e sempre! Sempre, não! Porque lá vem um dia em que as coisas se trocam, e em vez de sermos nós que vamos atrás da filarmónica, é ela, a filarmónica, que vai atrás de nós: a calça preta, a lira do boné envolta em crepe, o bombo silencioso, vagaroso o passo, e os metais, embaciados, a soluçar Chopin
A marcha fúnebre de Chopin!» In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library University of Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.

Cortesia de University of Toronto/JDACT