Composição de lugar
Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida.
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores.
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora.
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei.
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive.
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida.
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida.
Segunda Infância
À tua palavra me acolho lá onde
o dia começa e o corpo nos renasce.
Regresso recém-nascido ao teu regaço
minha mais ,funda infância meu paul.
Voltam de novo as folhas para as árvores
e nunca as lágrimas deixaram os olhos.
Nem houve céus forrados sobre as horas
nem míseras ideias de cotim
despovoaram alegres tardes de pássaros.
O sol continua a ser o único
acontecimento importante da rua.
Eu passo mas não peço às árvores
coração para além dos frutos.
Tu és ainda o maior dos mares
e embrulho-me na voz com que desdobras
o inumerável número dos dias.
Tarde interior
Vem ao meu pátio ver crescer a sombra
ó cheia de dois olhos minha amiga.
Olha-me olha-me como quem chove
conicamente sobre
um coração deposto
do corpo que o cercava
No ulmeiro do caminho
vegetal comentador do nosso amor
a folha tímida não partiu ainda
e ameaça encher a tarde toda.
Cubra-te ela a fronte
quando morrer aquém dos pássaros.
Repousa minha amiga as mãos
sobre o lugar onde estiveram as palavras
e que os gestos
arredondem um templo para a luz
que dos olhos despedes.
Já nos pesa nos pés a sombra
e pomos-lhe por cima o pensamento.
Acontecimento
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
Amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá.
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono.
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora.
Caiam agora que o amor chegou
Poemas de Ruy Belo, in “Obra Poética”
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