«O acidente, na sua vida, será a
publicação, não a representação. Porque esta, mais do que aquela, fazia parte
integrante da sua essência originária, era a meta final para que tendiam. Não
é, porém, só a materialização do texto sobre o palco - a poesia que
se levanta do livro e se torna humana, como dizia Lorca - que define a especificidade
própria do teatro. O último ensaio de uma peça diante de uma plateia vazia
é ainda a
antecâmara do teatro...
É indispensável que o espectáculo atinja o público, que entre este e aquele se estabeleça
uma correspondência - seja pelos canais da adesão emocional ou da reflexão
crítica, da distanciação ou da participação. Mas o público não é uma entidade abstracta;
a sua formação é condicionada pelas estruturas económicas e sociais de um lugar
e um tempo determinados. O que leva, necessariamente, a equacionar o problema
do teatro, se o quisermos abarcar na sua integralidade, fora das
super-estruturas teatrais.
Qualquer estudo, pois,
que se pretende empreender de uma dada época da história do teatro, terá de
atender a estas duas coordenadas: terá de considerar o teatro dessa época como
um fenómeno sócio-cultural, isto é, não como um facto puramente literário, nem
desligado das circunstâncias materiais de produção que caracterizam o período
estudado.
Pré-história do Teatro Português
Estas considerações
preliminares ajudam-nos a desmontar a tese, que muitos manuais de história da nossa
literatura ainda hoje acolhem e reproduzem, segundo a qual o teatro português
teria nascido nos alvores do século
XVI, com Gil Vicente, antes
do qual não existiria. Assenta essa tese, por um lado, na rubrica anteposta
pelo filho do poeta ao monólogo do Vaqueiro, nome por que
ficou mais conhecido o Auto da
Visitação com que abre a Compilação
de todas as obras de Gil Vicente, editada em 1562, e que
exactamente sessenta anos antes se representara nos paços reais de Lisboa, na
noite de 7 para 8 de Junho: aí se diz, com efeito, ser essa não só a
primeira coisa que o autor fez, mas ainda que em Portugal se
representou, o que viria confirmar a rubrica final do mesmo auto, onde
este é apresentado como coisa nova em Portugal. Uma outra confirmação
seria fornecida por umas trovas de Garcia de Resende, incluídas na Miscelânea, que se publicou em 1554, em
que se alude às representações/de estilo mui eloquente,/de mui novas invenções,/e
feitas por Gil Vicente, - o qual, acrescenta o compilador do Cancioneiro Geral, foi o que inventou/isto cá, e o usou/com
mais graça e mais doutrina. Por outro lado, o prático desconhecimento
de textos dramáticos escritos anteriores à obra vicentina, parece corroborar esta
prioridade atribuída ao autor das Barcas.
Nenhum destes argumentos, porém, se apoia numa base científica séria e
persuasiva, e qualquer deles oferece largamente o flanco à crítica.
Comecemos pelo
testemunho de Luís Vicente.
Para além de um natural e compreensível desejo de valorizar a obra paterna, que
só por si bastaria para induzir-nos a acolher com reserva os termos absolutos
em que ele é formulado, tantas são as lacunas e inexactidões, sobretudo no que
respeita à fixação da cronologia dos autos compilados, de que enferma a
colectânea, que a mais elementar prudência nos leva a não aceitá-lo. O depoimento
de Garcia de Resende, ainda
que Teófilo Braga pretenda
atribuí-lo a um impulso malévolo, amesquinhando a obra genial do
poeta, porque não seguira a nova corrente do Humanismo italiano, o que se
nos afigura uma gratuita suposição, teria já um outro peso, se o próprio Resende lhe não houvesse reduzido
consideravelmente o alcance ao descrever, nas suas crónicas, diversas
manifestações corteses de natureza inequivocamente teatral, que precederam os
autos de Gil Vicente e cujo espírito
este assimilou; e, sobretudo, ao incluir no Cancioneiro Geral um grande número de composições que daquela
natureza participam.
Não menos falacioso é o argumento que se funda na ausência,
meramente relativa aliás, de textos anteriores aos primeiros autos vicentinos.
Gaston Baty e René Chavance, na sua Vida
da Arte Teatral, das Origens aos Nossos Dias (Paris, 1932),
lembram muito judiciosamente que o facto de ter perdido a maior parte dos monumentos
da literatura dramática francesa anterior ao século XV não significa que ela
inexistisse, assim como ao longo hiato que se verifica no teatro espanhol entre
o Auto dos Reis Magos, datado da segunda metade do
século XII, e os esboços dramáticos de Gomez Manrique (século XV) também não
pode atribuir-se igual significado. Mas há, noutras zonas da literatura pátria,
exemplos afins, cuja meditação deveria induzir os que acreditam num teatro
português nascido miraculosamente por geração espontânea a uma prudência maior no
emprego de certos argumentos. Um desses exemplos é-nos fornecido por Fernão
Lopes, o pai da historiografia
portuguesa, que teve no entanto vários predecessores, muito embora as suas
obras não hajam chegado até nós. O outro, mais eloquente ainda, diz respeito à Poesia,
ou melhor, ao aparente silêncio da poesia portuguesa entre meados do século XIV
e do século XV - silêncio que seria errado interpretar como oclusão momentânea
do lirismo nacional: quando muito, a falta de textos (que não deve confundir-se
com a sua inexistência, pois apenas significa desconhecermo-los actualmente)
poderá imputar-se a uma crise de crescimento de uma poesia que começava a
emancipar-se dos esquemas paralelísticos da tradição galega e demandava, sob o influxo
do espírito renascente, novas formas e novos estilos». In
Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura
Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da
Livraria Bertrand, 1977.
continua
Cortesia do Instituto Camões/JDACT