sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «… diversas manifestações corteses de natureza inequivocamente teatral, que precederam os autos de Gil Vicente e cujo espírito este assimilou; e, sobretudo, ao incluir no Cancioneiro Geral um grande número de composições que daquela natureza participam»

jdact e cortesia de wikipedia

«O acidente, na sua vida, será a publicação, não a representação. Porque esta, mais do que aquela, fazia parte integrante da sua essência originária, era a meta final para que tendiam. Não é, porém, só a materialização do texto sobre o palco - a poesia que se levanta do livro e se torna humana, como dizia Lorca - que define a especificidade própria do teatro. O último ensaio de uma peça diante de uma plateia vazia é ainda a
antecâmara do teatro... É indispensável que o espectáculo atinja o público, que entre este e aquele se estabeleça uma correspondência - seja pelos canais da adesão emocional ou da reflexão crítica, da distanciação ou da participação. Mas o público não é uma entidade abstracta; a sua formação é condicionada pelas estruturas económicas e sociais de um lugar e um tempo determinados. O que leva, necessariamente, a equacionar o problema do teatro, se o quisermos abarcar na sua integralidade, fora das super-estruturas teatrais.
Qualquer estudo, pois, que se pretende empreender de uma dada época da história do teatro, terá de atender a estas duas coordenadas: terá de considerar o teatro dessa época como um fenómeno sócio-cultural, isto é, não como um facto puramente literário, nem desligado das circunstâncias materiais de produção que caracterizam o período estudado.

Pré-história do Teatro Português
Estas considerações preliminares ajudam-nos a desmontar a tese, que muitos manuais de história da nossa literatura ainda hoje acolhem e reproduzem, segundo a qual o teatro português teria nascido nos alvores do século XVI, com Gil Vicente, antes do qual não existiria. Assenta essa tese, por um lado, na rubrica anteposta pelo filho do poeta ao monólogo do Vaqueiro, nome por que ficou mais conhecido o Auto da Visitação com que abre a Compilação de todas as obras de Gil Vicente, editada em 1562, e que exactamente sessenta anos antes se representara nos paços reais de Lisboa, na noite de 7 para 8 de Junho: aí se diz, com efeito, ser essa não só a primeira coisa que o autor fez, mas ainda que em Portugal se representou, o que viria confirmar a rubrica final do mesmo auto, onde este é apresentado como coisa nova em Portugal. Uma outra confirmação seria fornecida por umas trovas de Garcia de Resende, incluídas na Miscelânea, que se publicou em 1554, em que se alude às representações/de estilo mui eloquente,/de mui novas invenções,/e feitas por Gil Vicente, - o qual, acrescenta o compilador do Cancioneiro Geral, foi o que inventou/isto cá, e o usou/com mais graça e mais doutrina. Por outro lado, o prático desconhecimento de textos dramáticos escritos anteriores à obra vicentina, parece corroborar esta prioridade atribuída ao autor das Barcas. Nenhum destes argumentos, porém, se apoia numa base científica séria e persuasiva, e qualquer deles oferece largamente o flanco à crítica.
Comecemos pelo testemunho de Luís Vicente. Para além de um natural e compreensível desejo de valorizar a obra paterna, que só por si bastaria para induzir-nos a acolher com reserva os termos absolutos em que ele é formulado, tantas são as lacunas e inexactidões, sobretudo no que respeita à fixação da cronologia dos autos compilados, de que enferma a colectânea, que a mais elementar prudência nos leva a não aceitá-lo. O depoimento de Garcia de Resende, ainda que Teófilo Braga pretenda atribuí-lo a um impulso malévolo, amesquinhando a obra genial do poeta, porque não seguira a nova corrente do Humanismo italiano, o que se nos afigura uma gratuita suposição, teria já um outro peso, se o próprio Resende lhe não houvesse reduzido consideravelmente o alcance ao descrever, nas suas crónicas, diversas manifestações corteses de natureza inequivocamente teatral, que precederam os autos de Gil Vicente e cujo espírito este assimilou; e, sobretudo, ao incluir no Cancioneiro Geral um grande número de composições que daquela natureza participam.
Não menos falacioso é o argumento que se funda na ausência, meramente relativa aliás, de textos anteriores aos primeiros autos vicentinos. Gaston Baty e René Chavance, na sua Vida da Arte Teatral, das Origens aos Nossos Dias (Paris, 1932), lembram muito judiciosamente que o facto de ter perdido a maior parte dos monumentos da literatura dramática francesa anterior ao século XV não significa que ela inexistisse, assim como ao longo hiato que se verifica no teatro espanhol entre o Auto dos Reis Magos, datado da segunda metade do século XII, e os esboços dramáticos de Gomez Manrique (século XV) também não pode atribuir-se igual significado. Mas há, noutras zonas da literatura pátria, exemplos afins, cuja meditação deveria induzir os que acreditam num teatro português nascido miraculosamente por geração espontânea a uma prudência maior no emprego de certos argumentos. Um desses exemplos é-nos fornecido por Fernão Lopes, o pai da historiografia portuguesa, que teve no entanto vários predecessores, muito embora as suas obras não hajam chegado até nós. O outro, mais eloquente ainda, diz respeito à Poesia, ou melhor, ao aparente silêncio da poesia portuguesa entre meados do século XIV e do século XV - silêncio que seria errado interpretar como oclusão momentânea do lirismo nacional: quando muito, a falta de textos (que não deve confundir-se com a sua inexistência, pois apenas significa desconhecermo-los actualmente) poderá imputar-se a uma crise de crescimento de uma poesia que começava a emancipar-se dos esquemas paralelísticos da tradição galega e demandava, sob o influxo do espírito renascente, novas formas e novos estilos». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

continua
Cortesia do Instituto Camões/JDACT