sábado, 12 de janeiro de 2013

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «Há entre os dois uma breve conversa muda, feita de pergunta e resposta: são eles, os que chegaram? Sim, são eles. Álvaro Pais quebra o silêncio. - São dois os cativos, cuido eu…»

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«A voz do escrivão funde-se com o toque das longas e depois desaparece como um espectro, e era um verdadeiro espectro, o da memória. Trazido à realidade, Álvaro Pais sobressalta-se. O som das longas é diferente, agora, daquele que ouviu ainda há pouco. Está muito próximo, soa no próprio castelo e é diferente.
Corre à janela. Um grupo de homens de armas, escoltando dois prisioneiros que vêm a pé, acorrentados, passou já a barbacã. É impossível distinguir os rostos dos cativos, pois mantêm as cabeças curvadas e a gente que os cerca oculta-os. Não o suficiente para que o chanceler não veja que foram já maltratados. Hão-de ser eles, bem o sentia. Aí são. Mas só dois? Ao menos, terá El-Rei dado ouvidos à verdade, terá mudado de tenção a respeito de Diogo Lopes?
Fica durante longos instantes a olhar a distância, agora que os recém-chegados entraram. Até que um movimento, atrás de si, o faz girar, voltar as costas à janela. Em sua frente, a poucos passos, está João Afonso Tello. Há entre os dois uma breve conversa muda, feita de pergunta e resposta: são eles, os que chegaram? Sim, são eles.
Álvaro Pais quebra o silêncio. - São dois os cativos, cuido eu. O conde de Barcelos faz um gesto afirmativo. - Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Venho de os mandar encerrar na masmorra. Diogo Lopes fugiu. El-Rei vai ouvir esta nova com grande sanha. - Pensava eu que El-Rei havia dado outras ordens... não importa. Como fugiu ele, e quando? - De que guisa, não sei. Foi em Castela, antes que o filhassem.
O rosto do chanceler distende-se num ténue sorriso. - A sanha de El-Rei irá então contra el-rei de Castela e a sua gente. E logo amainará, Deus querendo. - Cuidais que há razão para esperança? - O olhar de João Afonso iluminou-se. É um homem talhado duramente e curtido em guerras e montarias, no entanto, porque ainda é jovem, é-lhe fácil ter esperança. Mas o sorriso de Álvaro Pais desvanece-se ao dar a resposta: - Cuido que ninguém sofrerá com a fuga de Diogo Lopes Pacheco. Porém vos digo que a sanha de El-Rei se virará toda inteira contra esses que jazem na masmorra...
O chanceler baixa um pouco a voz para rematar: Por isso vos proponho aliança e que juntos lhe falemos, se nos der ouvidos. Antes que o conde de Barcelos possa replicar, entra pela janela aberta o som festivo das trompas de caça, depois o tropel de cavalos e uma vozearia abafada pelo furioso latido dos cães. Os dois conselheiros trocam um longo olhar e nem se apercebem da entrada dos moços-de-câmara, açodados, trazendo mais luzes, fruta, vinho, a taça preferida do Rei, em prata lavrada. Quando estão de novo sós, João Afonso caminha na direcção de Álvaro Pais.
 - El-Rei já saberá que eles chegaram? - Se não lho disseram - replica sombriamente o chanceler, ele o adivinhou. Nos últimos dias, tardou sempre e correu a caça até bem longe de Santarém. Mas hoje, ei-lo aí. E mal tenha saltado do cavalo, alguém lhe deu a nova, sede certo. João Afonso dá mais um passo e agora baixa a voz até transformá-la num murmúrio. - Álvaro Pais, o que fará El-Rei?
É uma rara concessão que o conde de Barcelos, grande senhor e mordomo-mor do Rei, faz ao chanceler. Uma relutante homenagem da juventude à idade madura, do orgulho do nobre à experiência e à inteligência do plebeu. Mas Álvaro Pais já viveu demasiado para se sentir lisonjeado ou movido por um simples gesto ou por uma atitude. - O que fará, não sei. Sei, como vós, o que ele fez, sendo infante: jurou perdoar aos matadores de D. Inês. Vós também fostes a Canavezes, haveis visto e ouvido.
Por instantes, os dois revêem aquele dia de sol e de vento. Ouvem o escrivão: Assim o jurais, senhor? E a voz de Pedro, nítida e fria: Assim o juro. Os instantes são breves, depois a recordação desaparece, estilhaçada pelo estrondo da grande porta que se abre para deixar entrar o Rei e, atrás dele, o jovem Afonso Madeira, de rosto fresco e gestos ágeis. Seguem-nos, num cortejo desordenado, fidalgos, monteiros, escudeiros, pajens e os cães favoritos que se espalham, pulam e correm por toda a parte, a latir, farejando, colhendo cheiros que lhes são pouco habituais. A sala enche-se de movimentos e ruídos». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT