(Continuação)
«Por
isso nunca hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta,
que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet e sumiu-se logo
no sepulcro. Este corajoso mea culpa chancela de verdadeiro o
que afirmei, pois. Acompanha-o uma impressionante gravura António Nobre no caixão,
nunca reproduzida, creio, em qualquer dos trabalhos até hoje publicados sobre o
Poeta. Apresenta um aspecto muito diferente daquele que todas as outras suas
conhecidas fotografias nos dão. Mais velho, o cabelo mais escasso, o bigode
crescido e farto caindo ao abandono sobre a boca, a barba também envolvendo-lhe
cerradamente o queixo, tais como ele não usou, estas divergências fisionómicas,
em relação aos retratos vulgares, tornam-no irreconhecível à primeira vista.
Mas, se lhe fixarmos os olhos, apesar de cerrados, é caso estranho!, logo o
reconhecemos e identificamos.
São
os seus olhos, não há dúvida! Às suas pupilas magas, largas e expressivas,
cobrem-nas ciosamente as pálpebras, mas a gente, não sei porquê, adivinha-as,
vê-as, negras, brilhantes, profundas, misteriosas, carregadas de sonho,
voltadas decerto para o oceano da eternidade, como navegador, à proa do seu barco,
que foi, no dizer de Raul Brandão.
Destacando-se
na alvura da camisa, do colarinho e da gravata e emergindo de entre tufos de
hervagem e flores, parece até que a sua cabeça de dolorido ostenta já na barba e
no bigode bastos fios de prata, a mascararem com uma velhice prematura os seus trinta
e dois anos de plena vida. Fora a Morte, talvez, que, sentindo-se mais velha do
que ele, - oh! Muito mais velha! - para dalgum modo atenuar a diferença entre a
idade própria e a do seu noivo, assim procurou aproximá-lo mais de si, envelhecendo-o,
num assomo violento de ciúme…
De António
Nobre, poucos ou nenhuns inéditos, no sentido rigoroso do termo, existirão hoje,
visto A Águia, da Renascença Portuguesa, do Porto, num carinhoso preito
de admiração, se ter dado já por diversas vezes à louvável tarefa de publicá-los,
chegando mesmo, além de editar o Só,
a fazer do n.º 10 da 1.ª série, de Julho de 1911, como que um opúsculo especial
em sua memória. Trouxe aí a lume muitas poesias nunca anteriormente dadas à estampa
umas, outras que o tinham sido mas não no Só
nem nas Despedidas e, por isso, quase intangíveis para o prazer espiritual
de muitos dos devotos do Poeta, soterradas como eram em páginas de jornais e
revistas efémeras, e outras ainda que a mão de Anto, subitamente enfadada, numa
dessas rajadas de tédio que tantas vezes enegreciam o firmamento claro do seu estro,
afastara de si, a meio da realização, e para sempre ficaram incompletas,
mutiladas na sua beleza. Capitaneou essas poesias um desenho de António Carneiro,
soberbo pela interpretação psicológica dos seus traços, em que o lápis bruxo do
artista-pintor nos deixa adivinhar o mundo complexo de pensamentos e sensações que
tumultuava no íntimo do Poeta. Seguiram também esse retrato três curiosas reproduções
fotográficas e o fac-simile dum autógrafo de Nobre. É este número da excelente revista portuense, sem dúvida, um
valioso e imprescindível subsídio para o estudo completo do Poeta que se faça algum
dia. Mais tarde, ainda ela voltou, em vários números da 2.ª série, a inserir novas
poesias de António Nobre, também exiladas
dos seus dois únicos livros, e que, futuramente, como é de justiça, se encontrarem
vontade piedosa e amiga a coligi-las num volume, reavivando o antigo propósito,
logo tomado quando da impressão das Despedidas, e primitivamente cometido
a Justino Montalvão, creio, com outras se arregimentarão de modo a formar
o texto dos Primeiros versos, livro anunciado mas nunca vindo a lume, atirados
de prestes os versos que o compunham para a penumbra empoeirada dos papéis íntimos
e avulsos, não sei eu e não sabe ninguém ainda hoje ao peso de que razoáveis motivos.
Assim,
se me não é concedida a honra de valorizar estas páginas com quaisquer produções
de Nobre absolutamente inéditas,
quis, contudo, um benéfico lance do acaso que me viessem cair entre as mãos uns
recortes de jornais antigos com versos da sua primeira fase, já documentando exuberantemente
a riqueza do seu temperamento lírico e, sobretudo, interessantes pela
naturalidade, pela frescura da maneira, então ainda bafejada por um espírito que
trazia o sol doirado da mocidade alegre a bater-lhe em cheio, centelhando-o de excelsa
graça, de fina bonomia, e mal deixando pressentir a aproximação sombria do pessimismo,
que pouco mais tarde havia de começar a persegui-lo pela vida fora, braço dado com
a doença, em conúbio trágico, para um apadrinhamento sinistro e mortal.
Como nenhuma
das poesias que seguem faça parte dos livros do Poeta ou das exumações de A Águia
realizadas até o presente, nem mesmo as tenha eu visto citadas por algum dos muitos
escritores que, episodicamente ou longamente, têm versado a individualidade de António Nobre, concluí estarem elas em absoluto
esquecidas, e, deste modo, já que um feliz acaso mas desvendava e punha sob os
olhos, me competia divulgá-las aqui». In César de Frias, A Afronta a António
Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of
Toronto 15 de Setembro de 1967.
continua
Cortesia
de Livraria Central Editores/JDACT