quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Raiz de Orvalho. Mia Couto. «Qualquer coisa, pergunta-me qualquer coisa, uma tolice, um mistério indecifrável, simplesmente para que eu saiba que queres ainda saber, para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer»

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Saudade
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura,
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés.

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar,
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio,
tua virtude, tua carência,
eu
que longe de ti sou fraco,
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta.

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água,
dá ocupação à minha ternura vadia,
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.
In 1979


Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo,
se acendes ainda
o minuto de cinza,
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue.

Pergunta-me
se o vento não traz nada,
se o vento tudo arrasta,
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos.

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas,
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser.

Se eras tu
que reunias pedaços do meu poema,
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente.

Qualquer coisa,
pergunta-me qualquer coisa,
uma tolice,
um mistério indecifrável,
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber,
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer.
In 1981

Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho’

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