terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Loja, Contra-Loja e Armazém. Tribuna Livre. Garcia de Castro. «Viram-me o sangue, também sou diabético. Estou quase surdo e tenho um aparelho, à cóclea ruminou a sinusite. Tomo o Dilfar com Monoket à noite, meu coração foi sempre uma surpresa. De igual parece andar aqui a próstata, muito me acorda até de madrugada»

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«As lojas como tal, legítimas, as ancestrais, não foram preparadas nem previstas para a prática do self-service, que as aviltou, no corpo e na sua psicologia. O self-service ilude a liberdade de uma escolha que a Publicidade não deixa. As lojas publicitavam com a indicação dos artigos em prospectos, panfletos, e em jornais locais, quando muito regionais. Eram toscos os aliciantes visuais. As de maior dimensão e profusão, como algumas de Lisboa, anunciavam modernamente na Rádio, com paródia ou sem paródia, em débitos de patrocínio, ainda usados, com recursos de intuição e de ingenuidade, mas não podiam provocar a incisão técnica e científica, especializada, que suporta industrialmente a publicidade de massas, cujos custos, afinal, são planos de investimento e agressão de marcas em concorrência. Daí que frequentemente se faziam com os fregueses, ao escolherem, amizades persistentes: com fregueses e fornecedores. Não obstante uma maioria tornada desinteressada que o self-service desviou das lojas, subsiste nas cidades de Província e nos pequenos meios um núcleo de clientela que, mesmo utilizando o self-service nos centros próprios, nunca se evadiu por completo da loja primordial dos seus hábitos de comprar, do local reminiscente, quantas vezes da infância ou da juventude.

Alegres somos nestes passatempos
O nosso colesterol foi bem comido.
Que estes sinais não sejam melanomas.
( - Não tenha medo, homem, são pigmentos).

Viram-me o sangue, também sou diabético.
Estou quase surdo e tenho um aparelho,
à cóclea ruminou a sinusite.
Tomo o Dilfar com Monoket à noite,
meu coração foi sempre uma surpresa.
De igual parece andar aqui a próstata,
muito me acorda até de madrugada.
É inguinal à esquerda a hérnia velha,
tossir e defecar faz-se com arte.
Desenroscado trago o pé direito,
agora é que vou ser distinto e fino,
falicamente, de bengala ao lado.
Isso é o menos, o pasmar dos ossos
são as artroses e o tremer das mãos,
imito bem o Telmo do Garrett.
Já desço e subo as escadas devagar,
vão sempre à minha frente, rua fora,
trouxa de andar a passear às montras.
Com a bronquite quase já me babo,
e ao copiar os sustos que aqui deixo
(Já Bocage não sou, dizia o outro),
engrelo os olhos, catarata avante.
Só incisivos há para mastigar,
fìca a beiçola feita de borracha,
ao que as crianças julgam ser por graça
 - para a diversão da sua crueldade.

Alegres somos nestes passatempos.
Cem miligramas de aspirina Cártia.
Diferente, o dia-a-dia é prevenção.
Zestril dos atrevidos para a tensão
de alerta nas artérias, rebeldia
de quando ainda os picos do amor...
Quase diria na traição do corpo
que a mente que o suscita é por cinismo.

Não adianta o espírito ser jovem,
por mais que o digam lá no INATEL,
onde, grotescas, vestem de amarelo
velhas que surgem de peúgas brancas,
cabeça e panamá num tremedalho.
Não contradigo, mas já é cansaço
ter sempre à minha frente a preto e branco
a pança e as farpelas das viúvas,
lambeiras por excursões, as nalgas anchas,
suas tristezas de alegria à solta.
E não se calam de falar num gajo
que eu nunca conheci, exemplo de homem,
que morto as alivia a toda a hora
e me chateia por as ter de ouvir
 - embora lhes pressinta a solidão.
Não contradigo. Mas assim não quero.

Vocês já viram como somos lentos?
E andar de carro e conduzir o carro?
 - vai-se assustado logo a cento e vinte.
E o estacionar! Andar de marcha-atrás!
Estraleja o peito num tambor miúdo,
vem a sulfúria à volta dos ouvidos.
Cerviz que serve, sirva reboliça.

Dançar a valsa é bom e faz sentido
 - melhor seria não arfar com ela.
Dançar a valsa exercita o brio,
dá lustro ao brio, mas empasta as pernas,
briosos são os pés - de plasticina.
Às vezes vamos viajar às terras
que enciclopédias dizem maravilha,
mas cá de fora, antigos monumentos,
outras minúcias de artefactos lestos,
não se percebem, porque estão lá longe
dos olhos com pintinhas que há na luz
 - tudo aparece salpicado e baço.
Estropiados, arrastamos malas.

E gostam dos hotéis mais de três estrelas,
gozam do luxo que não há em casa,
não têm de aturar ninguém em casa,
que as faz mais solitárias estando nela
que estando nos hotéis de onde não saem.
Gastar dinheiro é bom para descansar.
Por isso insistem nestas passeatas,
sua vergonha de dizer: - Só cansa!
Mas cansa muito mais ser sogra em casa.

In Garcia de Castro, Loja, Contra-Loja e Armazém, Tribuna Livre, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-162-6.

Cortesia de E. Colibri/JDACT