«O país formiga de devotos do trono e do altar ou de quaisquer outras
modalidades de conformismo para com o governo e a ordem, fosse ela liberal,
monárquico-constitucional, republicana ou salazarista. Não se ousa, entre nós,
subverter a ordem religiosa, política vigente, o que deriva, como é evidente,
de um temor reverencial paralizante em relação a retaliações por parte dos que mandam,
mas também por uma espécie de genética aversão a divergir, sobretudo
sob a forma radical de erguer toda uma arquitectura de conceitos diferentes de
cariz utópico. Uma vez ainda, a diferença com o panorama da vizinha Espanha é
abissal, já que ali a pequena mas aguerrida guerrilha dos heterodoxos e
heréticos assumidos marca a vida intelectual espanhola de um modo relevante e
forte, a ponto de um estudioso lhe ter consagrado três grossos tomos de
inventário dessa erva daninha.
NOTA: Trata-se da obra do filólogo e historiador Marcelino
Menéndez Pelayo (1856-1912), autor de um ingente trabalho de investigação
erudita que se traduziu na sua História
dos Heterodoxos espanhóis (1880-1882), na História das Ideias estéticas em Espanha (1882), n'As
Origens do Romance (1905-1910), etc. Marcelino não se coibia,
aliás, de incluir entre esses heterodoxos hispânicos alguns portugueses, como,
v. g., Damião de Góis, ainda que explicitando que se tratava dos erasmistas em
Portugal.
Entre nós, só no magro pelotão dos exilados e estrangeirados encontraríamos algo de equivalente a esses
rebeldes espanhóis, embora em número bem mais reduzido. Mesmo no século XX não
mudou este nosso sestro para sermos conformistas e timoratos pensadores sociais
e políticos, mais cães de guarda ao serviço dos regimes instalados do que
caçadores furtivos ou guerrilheiros rebeldes de um qualquer ideal dissonante,
pois mesmo figuras anómalas não logram merecer plenamente o estatuto de
contestadores frontais, mau grado o que tenham escrito sobre sistemas contra os
quais combateram... A heterodoxia foi sempre maleita rara nos campos psíquicos
lusos, já que aqui prolifera o escalracho do mais rasteiro conformismo ideológico
e, de par com ele, imperam todos os tribunais de todos os santos ofícios
encarregados de arrancarem as papoilas dissonantes que cresçam no trigal da establishment.
A heterodoxia em Portugal tem as pernas curtas. Basta que nos recordemos do
discurso do extremismo socialista do 25 de Abril: este oscilava entre o delírio
quimérico romântico de castristas ou maoístas lusos, com variantes soft de
terceiro mundismo, utopia de pantufas, ou alinhava pela gélida e chata vulgata
cunhalesca em vigor nos arraiais estalinistas caseiros, com um olho muito
aberto para as alavancas do poder real, mas não no mirífico V Império da
tal História do Futuro. Os socialistas domésticos, ou mesmo estrangeirados, esses,
muito fiéis à madrinha da social-democracia willybrantesca, ficavam-se por
reformismos de boa cepa iluminista, ou republicana, mais próximos, portanto, de
Kautsky do que do padre António Vieira... Dest'arte, o sebastianismo ficou de
fora, esquecido na poeira das bibliotecas, mera tineta para eruditos: o FMI
estava lá para impedir remakes
enlouquecidos das nossas velhas tonterias. Em suma, nem sebastianistas
nem utopistas no pós-25 de Abril.
O sebastianismo não é utopizante
De qualquer forma, convém lembrar que o sebastianismo, forma portuguesa
do messianismo, sonha com um Desejado ou um Messias miraculoso que pela
sua simples presença/regresso redima maravilhosamente toda a Miséria Portuguesa
e dê a todos um passadio confortável. Já em 1890 Fialho de Almeida definia o salvador sebástico como um protector
misterioso que viria numa manhã de névoa pôr-nos a mesa, arranjar-nos
emprego, mobilar-nos a casa, casar-nos rico.
E Jorge de Sena, com toda a
sarcástica amargura do lusíada no Exílio, zombava da raça sebastiânica lusa,
composta toda de rameiras e burocratas, a ouvir ranger no Encoberto a nau do
Encoberto... Não há, deste modo, nos nossos sebastianismos, verdadeiro
afã utópico, ou seja, falta-lhes autêntica subversão ética e político-social
capaz de imaginar uma Cidade Perfeita, uma Cidade Feliz no futuro. O Zé Povinho, estereótipo nacional desde
1875, comprova este nosso conformismo moral e ético-psicológico: de mãos nos
bolsos, somos sempre conformados e conformistas, incapazes de verdadeiras
revoltas, mas tão só de explosões efémeras ou, de quando em quando, de um
colérico brandir do gesto/protesto fálico, o Manguito, linguagem gestual de um
povo resignado, ocasionalmente irritado, mas incapaz de imaginar uma sociedade sã e
sabiamente governada, como dizia Morus. Não espanta, pois, que o Zé Povinho, um duplo diminutivo,
note-se, não seja simplesmente Povo, ou seja, povo deveras soberano e
protagonista da história real, mas povo
diminuído, ridicularizado por quem o governa, por quem o monta como a uma besta
de carga, quem lhe deita albarda e o criva de impostos». In
João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio sobre o estereótipo nacional
português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.
Cortesia da CM de Cascais/JDACT