Edenismo e utopismo
«Tornando ao utopismo: se o pensamento criativo e herético de um inexistente
Topos a construir ou Civis virtual a edificar um dia, lugar inexistente
ou não-lugar (U-topos), como programa político vindouro ou futurante, ainda
que de algum modo prefigurado pelo Platão da Politeia, nasce
verdadeiramente com o subversivo Morus, o facto é que, entre nós,
semelhante concepção arquitectónico-conceptual não teve quem seguisse a lição
ou a simples sugestão como género de nova visão do paraíso:
- a nossa tão abundante literatura de viagens em nada aponta nesse sentido perigosamente inovador, pois o que ali achamos é sobretudo exotismo, deslumbramento perante uma natureza diferente, luxuriante e vivaz, o diverso, o paradisíaco, como o demonstrou o historiador brasileiro Sérgio Buarque Holanda no seu estudo clássico sobre esse mesmo tópico.
NOTA: Sérgio Buarque Holanda insiste no deslumbramento poético
dos portugueses ao darem com a luxuriante natureza tropical do mundo novo e
lembra ainda que não houve mito do Bom selvagem nos portugueses, nem nos
nossos descobridores do Brasil, nada que se assemelhasse à defesa dos índios
feita por um Las Casas. E remata: aquela visão relativamente plácida das
terras descobertas, que se espelha nas descrições de seus viajantes, já se
ressente, por menos que o pareça, de um conservantismo fundamental. [...]. O facto
é que desse conservantismo fundamental, e tanto mais genuíno quanto não é em
geral deliberado, parecem ressentir-se as actividades dos portugueses mesmo nas
esferas em que chegaram a realizar obra pioneira. [...]. Mesmo comparada à dos
castelhanos, tão aferrados como eles a tudo quanto, sem dano maior, pudesse
ainda salvar-se do passado medieval, sua obra ultramarina é eminentemente tradicionalista.
Este edenismo português dos Descobrimentos de um Novo
Mundo achado em terras realmente virginais do Brasil, ou mesmo em África ou
ainda nessa Ásia que, de igual modo, nos aparecia de todo estranha e
exotíssima, não era, nunca seria de facto utópico. Algo de semelhante ou
equivalente se dava com os nossos vizinhos ibéricos no mesmo afã de descobertas
e conquistas do Novo Mundo nas mesmas paragens ameríndias, já que a
única autêntica utopia que eles ali edificaram foi prática, não conceptual,
referimo-nos às reduções jesuíticas do Paraguai, a Republica do Paraguai, experiência de ditadura teocrática
cristã que teria o seu conhecido epílogo no século XVIII, quando lusos e
espanhóis se coligassem para derrubar aquela Cidade de Deus edificada pelos loiolanos,
tema de actualidade por via da célebre fantasia cinematográfica de Roland
Joffé, A Missão (1986), demasiado interessada em mostrar a maldade
laicizante dos soberanos ibéricos contra a alegadamente idílica e utópica república
guarani, esquecendo a fórmula acertadamente ácida que dela dera Voltaire no capítulo XIV do Candide
(1759):
- [...] o governo de los Padres [...]. É uma coisa admirável este governo. [...]. Los Padres ali têm tudo e os povos nada. É a obra prima da razão e da justiça.
Menos de dois séculos depois, uma outra alegoria satírica de um regime
totalitária, o sistema soviético russo, merecia a Orwell um verdadeiro remake
chamado Animal Farm, no qual los padres eram agora os Porcos, os membros do Partido, aqueles que decretavam
que, embora todos fossem iguais, alguns havia ainda mais iguais do que
outros…» In João Medina, Zé Povinho sem Utopia, Ensaio sobre o estereótipo
nacional português, C. M. de Cascais, ICES, Cascais, 2004, ISBN 972-637-118-X.
Cortesia da CM de Cascais/JDACT