sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O Confronto do Olhar. O Encontro dos Povos na Época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha e Luís Albuquerque. «Se sob o ponto de vista técnico, a cartografia portuguesa não foi directamente revolucionária, acabaria por sê-lo de um modo indirecto. Na segunda metade do século XV, a náutica tradicional que os pilotos portugueses de início praticaram sofreu alterações…»

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Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
«Outro exemplo: algumas cartas planisféricas portuguesas, ao representarem a ligação do oceano Atlântico com o oceano Índico, arrumaram para sul, isolada da África e, mais tarde, também, da América Meridional, a grande massa de terra austral que vinha na tradição da tábua planisférica de Ptolomeu; isso verifica-se no atlas dito de Millen, atribuível a Lopo Homem e datável de 1519, pertença da Biblioteca Nacional de Paris, e também no planisfério do atlas de Luís Teixeira - João Bapista Lavanha (1597-1612), que se conserva na Biblioteca Reale de Torino; sabemos hoje que existe, de facto, esse continente austral, mas nesse tempo tal facto era completamente desconhecido, e em qualquer dos casos a representaçãp excede a área desse, afinal, sexto continente coberto de neves. É de notar que, no primeiro dos dois planisférios citados, as terras austrais ligam-se ao continente americano, e, no segundo, ao continente asiático; isso reforça a explicação proposta. Aliás, à data do desenho do planisfério de Lopo Homem ainda a viagem de Fernão de Magalhães-Sebastian de Elcano não se realizara, e o oceano Pacífico era desconhecido.
Se sob o ponto de vista técnico, como se disse, a cartografia portuguesa não foi directamente revolucionária, acabaria por sê-lo de um modo indirecto. Com efeito, na segunda metade do século XV, a náutica tradicional que os pilotos portugueses de início praticaram sofreu alterações; não vamos aqui deter-nos nos motivos que a tal conduziram, mas podemos repetir que se tratou de uma verdadeira revolução, já que a navegação pelo largo Atlântico impôs a medida de uma coordenada astronómica a bordo da Estrela Polar, de outras estrelas e do Sol, marcando assim o advento de uma verdadeira navegação astronómica; procedimento que, a breve trecho, levou à determinação de latitudes a bordo, ou seja, que abriu as portas à navegação moderna. E como a cartografia acompanhava a náutica, as escalas de latitudes acabariam inevitavelmente por aparecer, mais cedo ou mais tarde, nas cartas; no planisfério de Cantino surge ainda a medo e indirectamente uma dessas escalas, através da representação da linha equinocial e das linhas dos trópicos; mas numa carta de Pedro Reinel de c. 1504 as latitudes vêm apontadas numa escala geral, e também numa escala particular para a área da Terra Nova, acréscimo provocado por motivos em que não podemos deter-nos agora.
A observação de latitudes ou a inserção de tal escala nas cartas mostrou logo que estas não estavam traçadas para a arte de navegar entretanto introduzida; disse-o difusamente Diogo Gomes, no seu depoimento prestado a Martim Behaim, e repetiu-o poucos anos depois o piloto João de Lisboa, e este com toda a clareza. Mas as rotinas são difíceis de vencer, se navegou por latitudes, foi porque nesse caso a rotina da arte náutica anterior era absolutamente inaplicável! E as cartas tradicionais continuaram a ser usadas, com correcções arbitrárias que dependiam da imaginação ou do arbítrio dos pilotos que as usavam.
Existem viários testemunhos de tal modo de agir e, entre eles, os do insuspeito vice-rei João de Castro. Não há, contudo, razões para nos surpreendermos: Gerard Kremer (Mercator) concebeu, e ainda se não sabe por que meios, a chamada carta de latitudes crescidas, que permitia representar por linhas rectas as loxodrómicas; era flamengo, e mesmo na Flandres levou dezenas de anos a ser reconhecido o mérito da sua invenção, ou seja, a sua vantagem prática. Por essa e por outras razões, a cartografìa portuguesa entrou em declínio no século XVII; esgotara-se o seu importante papel de revelar ao mundo culto e aos meios navais como se distribuíam as trras e os mares, as ilhas e os golfos do mundo em que todos viviam. E cartografia que tivera também repercussões em outras maneiras de ver esse mundo, como se prova nas cartas de origem japonesa do fìnal do século XVI, decalcadas em cartas portuguesas, e para apenas citarmos um exemplo; com contrapartidas evidentemente: quando os navegadores saídos de Lisboa chegaram ao Índico, e se alongaram até às águas mais ocidentais do Pacífico, encontraram cartas dos nautas locais, possivglmente árabes, malaios, guzarates, e talvez de outras origens; sem qualquer hesitação aproveitaram-nas, como mostra o chamado Livro de Francisco Rodrigues, que se anexou à Suma Oriental de Tomé Pires. Reside neste acontecimento um factor essencial do encontro e, mais do que isso, de troca de culturas. É um confronto do olhar e de permutas técnicas que se complementaram ou, em dadas circunstâncias, se podem substituir». In Luís de Albuquerque, Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT