sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse’. Xosé Manuel Dasilva. «O poema camoniano poderá até conter alguns ecos dos versos iniciais da composição “Qui no és trist, de mos dictats no cur”, do escritor valenciano Ausiàs March, designadamente no que toca ao convite ao público…»


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«Além disso, é notória a similitude decorrente de uma focagem temporal que permite ao emissor lírico contemplar os dias do passado a partir do arrependimento do presente, de tal modo que os seus versos se fazem exemplo dissuasor para outros amantes. Para além do modelo primigénio de Petrarca, Em quanto quis Fortuna que tivesse tem reminiscências do soneto de Juan Boscán Nunca dAmor estuve tan contento:

Nunca d’Amor estuve tan contento
que’n su loor mis versos ocupase;
ni a nadie consejé que s’engañase
buscando en el amor contentamiento.

Esto siempre juzgó mi entendimiento:
que d’este mal tod’hombre se guardase,
y así, porque’sta ley se conservase,
holgué de ser a todos escarmiento.

¡O vosotros que andáis tras mis escritos
gustando de leer tormentos tristes,
según que por amar son infinitos!,

Mis versos son deciros: “¡O benditos
los que de Dios tan gran merced huvistes
que del poder d’Amor fuésedes quitos!”

Tais reminiscências dizem respeito, de novo, à utilização da forma vós, numa apóstrofe aos leitores que ocupa, em ambos os textos, o mesmo lugar, no começo do primeiro terceto. O poema camoniano poderá até conter alguns ecos dos versos iniciais da composição Qui no és trist, de mos dictats no cur, do escritor valenciano Ausiàs March, designadamente no que toca ao convite ao público para que leia os textos consoante a intensidade do seu próprio sentimento amoroso:

Qui no és trist, de mos dictats no cur,
o n algun temps que sia trist estat,
e lo qui és de mals passionat,
per fer-se trist no cerque lloch escur:
llija mos dits mostrans penssa torbada,
sens algun art, exits d’hom fora seny,
e la raó qu en tal dolor m’enpeny
Amor ho sab, qui n’és causa estada.

Enfim, seria possível identificar algumas afinidades entre o poema camoniano e o soneto Huir procuro el encarecimiento, do autor espanhol Hernando de Acuña. Observe-se, por um lado, o tema da intenção de cantar apenas verdades, e não enganos, e, por outro lado, os propósitos dissuasores:

Huir procuro el encarecimiento,
no quiero que en mis versos haya engaño,
sino que muestren mi dolor tamaño
cual le siente en efeto el sentimiento.

Que mostrándole tal cual yo le siento
será tan nuevo al mundo y tan extraño,
que la memoria sola de mi daño
a muchos pondrá aviso y escarmiento.

Así, leyendo o siéndoles contadas
mis pasiones, podrán luego apartarse
de seguir el error de mis pisadas

y a más seguro puerto enderezarse,
do puedan con sus naves despalmadas
en la tormenta deste mar salvarse.

Quanto às interpretações críticas de maior relevo, diga-se que Em quanto quis Fortuna que tivesse foi qualificado por Helder Macedo como o pórtico mais adequado de toda a sua poesia lírica. Por sua vez, Agostinho Campos, quando ordena a edição Camões lírico, distingue uma série formada por seis sonetos dispostos alfabeticamente, o primeiro dos oito grupos que organiza, o qual denomina, com critério intuitivo, Sonetos prologais. Eis os seis poemas que selecciona:

Despois que quis Amor queu só passasse,
em quanto quis Fortuna que tivesse,
eu cantarei do Amor tão docemente,
no tempo que damor viver soía,
pois meus olhos não cansam de chorar e
sospiros inflamados, que cantais.

In Xosé Manuel Dasilva. Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse, revista Limite nº 5, Universidade de Vigo 2011.

Cortesia de Limite/JDACT